Golpe no Brasil: outro lado da mesma moeda

Hoje quem manda politicamente no Brasil teve a personalidade forjada em um período de exceção. E não consegue pensar outro país fora do recalque ao qual se prende.

CULTURA



As atuais (reais) lideranças políticas (e judiciárias) no topo da cadeia alimentar nacional querem fazer crer a alguns incautos que, certo dia, sonharam com um  regime político, econômico e social harmônico se estendendo por todo o hemisfério. 

Haveria, reza tal lenda mediatizada, uma ilha de liberdades e inclusão alardeada como possível por utopistas que certamente abraçaram várias idéias de Karl Marx, enquanto negando aceitar o que essas confabulações viriam a significar aos países (e seus povos subjugados por líderes corruptos) que resolveram as colocar em prática.

A experiência vivida cria hábitos. Não apenas nossos simpáticos pets, mas também nós, somos seres imitadores. Nosso instinto animal é de sobrevivência, mas nossa prática social é de mera repetição de ações e reações que passamos a entender como normais, aceitáveis ou mesmo justificáveis.

No âmbito do poder, sobretudo no alto e extremado poder, justificar os próprios atos por mais danosos e imorais que sejam, faz parte do script. É possível e fácil reunirem-se grupos para perpetrarem e aprovarem atrocidades. A história está cheia disso e a delinquência juvenil é a melhor prova da imbecilidade grupal, que atualmente tem se estendido a todas as idéias e idades por meio dos julgamentos coletivos das facilmente acessíveis mídias sociais ("mob rule") quando utilizadas por grupos organizados e criminosos.

Assim, copiamos nosso meio, aquele em que fomos forjados selecionando experiências e comportamentos, muitos dos quais somos incapazes de avaliar, pois nos faltam parâmetros diversos (para além das aparências). 

Uma cultura é assim preservada, sendo difícil alterá-la para que um povo escolha novos e melhores caminhos.

Os 40 anos que Moisés levou para conduzir o povo judeu do Egito a Israel (200 km de distância) parecem-me ter sido apenas uma metáfora

Uma ou duas gerações teriam sido necessárias para que a mentalidade de escravo fosse finalmente apagada para permitir a criação, por um povo livre, de uma nova nação desprendida dos hábitos de quem havia sido submetido a humilhações e privações inaceitáveis. A narrativa da nova realidade precisava ter sido escrita por quem não viveu como escravo, já que aqueles que haviam sido subjugados pelo faraó durante toda a sua vida não teriam conseguido pensar outra realidade, seus atos sendo por demais influenciados por quem ainda tinha a memória da submissão.

A transformação do escravagismo brasileiro foi também distorcida pela Lei Rio Branco, ou Lei do Ventre Livre. A manutenção da mentalidade e da cultura escravocrata foi assim garantida, já que o bebê nascido livre seria obrigado a crescer e formar sua personalidade com pais e avós (se sobreviventes) subjugados, tornados passivos, oprimidos por proprietários incomodados com a nova realidade que se instalaria.

BRASIL BRUTO

O Brasil convive com a cultura da força bruta desde sua criação. 

Sabemos que os portugueses, auxiliados pelos metódicos jesuítas, iniciaram a ocupação do território como os espanhóis: pelo genocídio já que as doenças européias (sobretudo varíola) foram inoculadas intencionalmente com intuito de destruir populações inteiras.

O antropólogo Darcy Ribeiro, em Os índios e a civilização ressaltava que os invasores usavam velhas técnicas coloniais, como o "envenenamento das aguadas" e "o abandono de roupas e utensílios de variolosos onde pudessem ser tomados pelos índios", como se pode ler nesse artigo.

A cultura da violência se perpetuou por meio da monocultura e da importação do que veio a significar 50% de todos os escravos africanos exportados ao mundo, após o ano 1500. 

O Brasil, a despeito de suas belezas naturais cantadas em verso e prosa, um paraíso terreno, sempre teve seu território decorado por sangue e violência, tendo aceito e normalizado a cultura do desprezo de um ser em relação ao outro.

Não se culpem as vítimas, mas achar que apenas vítimas não teriam sucumbido à mentalidade da violência seria inocente. Todos os atores do ecosistema são doentes. 

Da mesma forma que Moisés e o povo judeu precisaram de duas gerações para mudarem a mentalidade e construírem uma sociedade autêntica, livre, o Brasil precisaria de um novo caminho para criar-se autêntico. Não seria tampouco a sociedade utópica oriunda do genocídio que Mao Tsé-Tung perpetrou na China, mas aquela que aprendeu e evoluiu, como várias o fizeram no curso da história. 

Nesse ponto, muito há o que se aprender com o Québec, cuja Revolução Tranquila de 1968 mereceria ser melhor conhecida pelos brasileiros para inspirar-lhes. Aquela província canadense alterou-se profundamente em uma geração, tendo permitido a ascensão social e econômica dos francófonos frente aos anglófonos sem que uma gota de sangue tivesse sido derramada (à exceção de um episódio isolado de uma organização terrorista condenada pela maioria da população ainda que sua bandeira ideológica fosse com ela compartilhada). Os québecois entenderam que o objetivo pode ser alcançado por diversos meios e que apenas a transformação pacífica, tranquila, acomodativa, permite prosperidade sem ruptura ou sofrimento.

Nos últimos 100 anos o Brasil vive de sobressaltos e violência. Não se trata apenas da violência urbana e rural retratada em diversos posts já feitos nesse blog. Houve muita violência política: 1930, 1969, 2019 e 2022.

VÁRIOS GOLPES, E SUAS TENTATIVAS

Em 1930, Getúlio Vargas promoveu o Estado Novo, um Golpe de Estado que enterrava uma política não-representativa de alternância de poder, a tal Política do Café-com-Leite. Vargas reprimiu e reinou com mão de ferro por 15 anos, retornando ao poder pelo voto pouco tempo depois até suicidar-se, de forma teatralmente dramática e patética, no Palácio do Catete em 1954.

Em 1964, em reação à crescente onda comunista que se alastrava pela América Latina desde que, em 1959 Fidel Castro, liderou golpe em Cuba, parcela da população brasileira apoiou a tomada de poder pelas Forças Armadas. A reorganização brasileira não ocorreu como previsto pelos apoiadores da tomada do poder e, em 1969, ocorreu o Golpe de Estado, em que a democracia seria finalmente enterrada pela publicação ao Ato Institucional número 5, ou AI-5. Digno de nota é o voto de Pedro Aleixo contrário ao ato institucional, que você consegue ler aqui.

Em 2019, iniciou-se concretamente mais um tedioso Golpe de Estado no Brasil, dessa vez orquestrado fora do Poder Executivo, por meio do fim da prisão após condenação em segunda instância, como visto nesse release do STF (contrariando prática em todo país desenvolvido e própria jurisprudência anterior). Após o Poder Executivo ter negociado trégua com o Poder Judiciário para, juntos, encobrirem corrupção endêmica gerando benefícios a membros específicos, como bem explicado nesse post, o Supremo Tribunal Federal - aparelhado por pessoas sem alinhamento ideológico, mas com agenda comum rumo ao poder absoluto juntamente com outros políticos e líderes nacionais - iniciou o golpeamento que culminaria no retorno do mentor e patrono de grande parte de seus membros: Lula da Silva retornaria ao poder, no que poderia tranquilamente ser chamado de Golpe de 2022

Caso o STF não tivesse manobrado e distorcido a Constituição Federal a bel prazer e interesses de seus próprios membros - e do seu mestre e mentor-maior - a história teria seguido seu curso natural, aquele da livre escolha dos brasileiros (e não de seus senhores que lhes tratam como vassalos).

Note-se que, entrementes, houve suspiro golpista por parte de Bolsonaristas roxos, doentes, similar a um tiro de festim, em nada comparável à eficácia com que, da mesma forma (lados de uma mesma moeda), adeptos da violência tomassem o poder absoluto com a maestria dos golpes de 2019 e 2022.

Assim, vê-se o Brasil novamente em regime de exceção, em que a censura retornou, em que o Congresso Nacional é manipulado para agradar aos demais poderes em uma harmonia longe de inocente ou benéfica à nação.

E o Brasil continua como sempre foi: feito para seus donos, tornando reféns 220 milhões de habitantes que financiam seus algozes em cada um de seus atos e operações.

MUDANÇA?

Nesses quatro meses de Poder Executivo artificialmente criado por manobras jurídicas que permitiram o retorno do melhor pelego, representante do capitalismo de compadrio, ao poder; ou os já decorridos quatro anos desde que os Illuminati togados assumiram o timão da nação, já se vê que pouco ou nada de bom tem sido criado.

A desarmonia, a desconfiança, a criminalização de qualquer oposição ou opositor, a fuga de capitais e de jornalistas, a redução nos investimentos, o aumento do desemprego e da dependência de bolsa isso-e-aquilo, silenciando vozes dissonantes, tudo isso integra a política do dividir para conquistar, que já examinei nesse post.

Os que detêem poder hoje no Brasil, aqueles em Brasília que compram aliados com recursos dos contribuintes, assim mantendo-se intocáveis, acima das leis, amorais, não serão agentes de qualquer mudança, posto que utilizam-se dos mesmos meios e lógica implantados em terras tupiniquins há 523 anos.

Uma nova geração precisará ser forjada a salvo da narrativa messiânica de golpistas de lado-a-lado, conhecedora de métodos pacíficos e harmônicos para um projeto de nação real, não um arremedo de utopia comprovadamente fracassada.

Eventualmente, essa nova geração surgirá, a despeito da censura, da Lei das Fake News e outras medidas ditatoriais e de exceção limitadoras da existência humana que esses seres ignóbeis impingem sobre brasileiros.

O certo é que, nem a integralidade dos membros do Supremo Tribunal Federal, nem a integralidade dos membros do Poder Executivo (em todos os seus 1. e 2. escalão), bem como boa parte dos políticos profissionais aboletados no Congresso Nacional, contribuirão para qualquer evolução social no Brasil. 

Pelo contrário: apenas a partida voluntária desses que citei acima possibilitará alguma chance, alguma oportunidade, de o país encontrar sua vocação, harmonia, felicidade e justiça.





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