Absenteísmo eleitoral: a decadência do valor democrático

 A abstenção dos eleitores é um fenômeno crescente mundo afora, nas democracias.

Não precisa fazer estudos complexos, caros e inflados de doutores e especialistas para se entender o fenômeno do absenteísmo por dois ângulos simples: um é operacional, de governança, o outro é efetivamente democrático, ou melhor, é o déficit democrático


GOVERNANÇA

Do ponto de vista operacional, o conceito da eficiência, reputado falaciosamente como de origem exclusivamente privada, invadiu a administração pública. Países democráticos, em geral, construíram um sistema gerencial público que atende razoavelmente as demandas mais prementes das populações. Isso cria um sentimento de que, independentemente do governante, as coisas vão funcionar mais ou menos da mesma forma.

E mais: os problemas crônicos que existem, independentemente das promessas de candidatos, não serão resolvidos por quem quer que seja. Como exemplo dessa afirmativa, cito alguns problemas localizados, identificados, jamais resolvidos independentemente das cores dos partidos e candidatos que saíram vitoriosos:

- Anel Rodoviário em Belo Horizonte: há 20 anos é um lixo, tem acidentes horríveis sempre, desastres constantes o interrompem, todo candidato o usa como plataforma, mas à parte medidas cosméticas, jamais algo foi ou será feito. É um misto de incompetência gerencial associado à incapacidade de articulação das autoridades envolvidas para encontrarem uma solução economicamente viável (possivelmente impossível pelas desapropriações necessárias para transformar o Anel em algo seguro e bom).

- Sistema de saúde da Província do Québec: foi desenhado por políticos e médicos interessados em manterem a escassez dos serviços e serem valorizados como deuses. A população não tem acesso à medicina profilática e poucos possuem médicos de família (requisito necessário para obter encaminhamento a especialistas). As salas de urgência se tornaram a única opção para milhões de contribuintes que não acreditam em qualquer otimização desse labirinto público, resignando-se a esperar de 6 a 12 horas para serem plenamente atendidos, sobretudo se não estão realmente à beira da morte. Entra-sai candidato, partido, prometendo mudanças, melhorias, mas o nó é tão grande, que não faz diferença alguma.

DÉFICIT DEMOCRÁTICO

A individualização da democracia é o processo pelo qual os direitos individuais  (e sectários) tornam-se mais relevantes que os coletivos, baseando-se teoricamente nesses.

Vou explicar: na medida em que valores democráticos exigem tolerância e acesso à justiça, grupos sectários se organizam e conseguem enormes vitórias (econômicas, políticas, acadêmicas, midiáticas...) fruto de sua ação coordenada e ensaiada, conquanto a maioria do povo continua marginalizada.

São funcionários públicos que, bem organizados, conseguem vantagens indescritíveis, onerando o tesouro e promovendo uma transferência injusta de renda e privilégios praticamente impossível de ser desarmada segundo o jogo democrático.

São sindicatos fortes, com boas ligações políticas, que forçam governo e setor privado a se dobrarem a exigências absurdas e a atrasar liberdades trabalhistas, resultando no prejuízo da maioria.

São igrejinhas (ou igrejonas) conseguindo isenções, conquistando poder e influência, perpetuando-se na engrenagem religião-estado que relembra o antigo clero criminoso que estudamos quando da Idade Média, antes da Era das Luzes.

Incluo aqui também os corruptos, notadamente aqueles que assaltaram o Brasil à luz do dia, nas eras Lula e Dilma, no Mensalão e no Petrolão, pegos pela patriótica Operação Lava-Jato, que em época recente passaram a acusarem seus acusadores, sendo progressivamente liberados de suas penas por força de seu alinhamento ideológico com os mais altos magistrados brasileiros. O direito à bilionária defesa desses criminosos os torna párias de um sistema jurídico concebido para a coletividade, mas que atende apenas ao interesse de poucos, já que sua efetividade atende a privilegiados... os mesmos de sempre.

Essa individualização do atendimento das demandas democráticas faz com que o eleitor não veja seu voto como material decisivo de influência política. Esse instrumento - O VOTO - passou a não ter valor, aos olhos sobretudo dos excluídos de todos os grupelhos e das engrenagens sectárias. É uma percepção importante.

Veja inclusive meu campo de pesquisa: política financeira e monetária:

Com a progressiva agencização dos governos, técnicos não-eleitos, altos burocratas sem qualquer controle democrático após aceitas suas indicações para mandatos longos e praticamente intocáveis, mandam no país, determinando seu funcionamento sob regras rígidas, muitas vezes não-legisladas, importadas de centros de poder como Washington ou Frankfurt (ou Basiléia...). 

A mecanicidade imposta ao funcionamento da máquina pública, que usa e direciona nossos impostos, fez com que o conceito democrático tenha se tornado uma quimera.

A constatação de que o voto não muda grande coisa, que o establishment prevalecerá independentemente de quem ganhar, tem desanimado sobretudo os jovens. Segundo dados, eles são os que menos têm saído para votar... pois acham que "nada vai mudar mesmo". 

O problema é que, além da alienação eleitoral, tal sentimento fomenta o espírito anárquico. Como os jovens acham que apenas têm a ganhar, e nada a perder, seu não-voto não resulta apenas em apatia ou omissão. Eles assumem, por vezes, posturas anárquicas, com tendência a simpatizarem com ideologias destrutivas inclusive da nossa civilização livre = ocidental.

É o caso de todas as novas religiões radicais travestidas de ideologias que vêm surgindo e de alguma forma determinam decisões daqueles no poder - tanto público quanto privado. 

A urgência climática como algo consequente da modernidade e do desenvolvimento humano e que precisam ser menos poluentes e predatórios tornou-se sinônimo de ódio e destruição, encaixando-se até mesmo na agenda anti-capitalista (coletivista), como se constata de manifestações violentas mundo afora. Ignorar a noção evolutiva das tecnologias que visam produzir e atender às demandas humanas com menos degradação ambiental tem feito com que jovens abracem uma ideologia radical similar às mais violentas religiões, resultando em obras doutrinadoras criando verdadeiras cruzadas contra tudo e contra todos que não lhe sejam espelho.

É o antagonismo privado-público, onde um culpa o outro de todos os males e incompetências planetárias. É a não-aceitação explícita de que boa parte da economia mundial faz-se nas trevas, longe dos números e estatísticas oficiais, onde máfias e grupos ocultos, escondidos por detrás de um emaranhado de empresas, movimenta somas astronômicas entre si alimentando o crime, a morte, tráfico de armas e drogas, golpes de estado e guerras.

RESULTADO - ALIENAÇÃO ELEITORAL

A França ontem constatou absenteísmo monstro, só inferior ao de 1969. De 25,44% que não foram votar (lá o voto é facultativo, diferente do Brasil, onde é obrigatório e o cidadão paga multa se deixar de sair para votar) em 2018, esse ano 28,01% não votaram, ou seja, quase 1/3 dos franceses - por protesto, desinteresse ou decepção - ignorou as eleições presidenciais.

Lembremo-nos que a juventude francesa ensaiou uma festiva revolução em maio de 1968 pelas ruas de Paris. Botou fogo em carros diante da Sorbonne e compôs músicas de protesto inspiradas por cantos comunistas, praticando sexo livre e  consumindo muitas drogas. As fotos ficaram famosas. Bem como o absenteísmo eleitoral no ano seguinte...




No Brasil, a despeito de multa e das consequências para quem não vota, em 2018 o absenteísmo foi alto: 20,3% no primeiro turno e 21,3% no segundo turno. 

Para um país que viveu duas décadas de regime militar e vários outros sob ditadura, em que nenhuma geração deixou de conviver com quem viveu sob ditaduras e regimes fortes, é significativo que tanta gente 1/4 ignore a importância do voto, voluntariamente.

Em meu relato da trágica experiência eleitoral que vivi em Montreal, informei que em 2021 apenas 38% dos eleitores da metrópole foram votar... ou seja, um absenteísmo de astronômicos 62%!!! 

Tudo isso diz muita coisa sobre os políticos... a política e a necessidade de se resgatar a participação cidadã. Se Churchill teve razão ao criticar a democracia como um péssimo regime político, à exceção dos demais, devemo-nos questionar sobre as razões da omissão democrática e como fazer com que o voto e a participação retornem à lista de elementos prioritários para uma vida em sociedade organizada.





 


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