Auto-penitência e hábito científico

Não sou propriamente religioso ou místico, mas sempre frequentei prazeirosa e curiosamente cultos religiosos nas duas religiões monoteístas que meus antepassados me legaram: cristianismo e judaísmo. 

Sendo o judaísmo a raiz do cristianismo, essas compartilham festejos, valores éticos e algo que sempre achei muito interessante e útil: o exame de consciência e a auto-penitência pelos erros cometidos, na busca do aprimoramento constante

Na prática cristã que conheço, em cada missa há um momento inicial de auto-penitência, rogando-se pela piedade divina. 

No judaísmo, Yom Kippur é denominado Dia do Perdão, momento em que um exame de consciência visa limpar de culpa o coração, pedir perdão não a Deus, mas a quem se fez ou quis mal, para se seguir adiante, sem o peso dos erros do passado ou a amargura que atrasam a evolução.


Como investigador da Idade Média, pelo volume concentrado e riquíssimo de reflexões e filosofia resultantes da época que culminou no Iluminismo, apaixonei-me, desde tenra idade, pelos ensinamentos de Guilherme de Occam (1287-1347). 

Esse frade despojou-se das preocupações materiais - como um bom e autêntico franciscano - legando-nos uma construção imensa na filosofia e nas humanidades. Suas idéias e perspectivas são geniais, fazendo-me sugerir aos que não tenham familiaridade com esse grande filósofo medieval que o conheçam a fundo.

Alguns dos famosos ensinamentos de Guilherme de Occam se encontram nas citações a seguir:

Quando tudo se parece, a explicação mais simples será a correta

Se duas teorias competem sobre a mesma previsão, a mais simples será a correta.

É vão fazer com mais, quando se pode fazer com menos.

Entendo que a condução a uma ciência de altíssima qualidade resulta da prática antiga e religiosa da auto-penitência pelo Ocidente.

Não constituiria a revisão de nossos atos, de uma forma ritualística e grave, em um ambiente sagrado e místico regido por um ser divino, a melhor forma de criação de protocolos científicos em busca da verdade? 

Tal prática visa, religiosamente, a uma melhor conduta ética, tendo se metamorfoseado, pelo Iluminismo, em procedimentos a uma melhor conduta técnica, científica. Daí os imensos avanços organizados, refletidos, bem documentados e sustentáveis representados pela ciência moderna.

A Idade Média lançou a humanidade em um período reflexivo , agravado pela Peste Negra que dizimou 1/3 da população européia. Houve guerras intermináveis e tais flagelos sanitários exigiram retração e recolhimento, beneficiando aqueles que melhor conseguiram isolar-se: os religiosos em seus monastérios, afastados de tudo e todos.

Torna-se incontornável chegarmos na era moderna em Max Weber, festejado como maior filósofo a estabelecer a relação entre religiosidade e ciência. Ele construiu a ponte lógica que melhor permitiu auto-conhecimento à humanidade. 

Weber não estava contaminado pelo marxismo que vitimou Foucault e Hacking (tornando imprestáveis quase todas as conclusões lógicas e trabalhos desses, ainda que festejados em certos meios acadêmicos). 

A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo constitui, portanto, um salto às idéias de Occam, organizando a evolução da disciplina religiosa ao desenvolvimento e ao gênio humanos, sendo leitura obrigatória a todos os cientistas ou curiosos.

O mundo atual distanciou-se do método científico, pois conforto e abundância criaram novos dilemas, a maioria dos quais ilusórios, mas que abraçados por elites conduziriam a humanidade a novo período de insanidade e desorientação ética. Tal fenômeno foi bem registrado no chamado Período Helenístico, em que luxo e abundância exaltaram o hedonismo, início da decadência daquele que foi um povo vanguardista em sua época, mas cujo sucesso foi causa da própria ruína.

O exercício da revisão dos atos, das decisões, para que não se repitam, é especialmente relevante aos seres humanos, diante de nossa capacidade de efetuarmos registros, seja pelas imagens, seja pela escrita.

Não à toa, em um momento em que a abundância de informações nubla a mente, nada mais recomendável do que o exercício da milenar meditação, ou auto-penitência, em que antes de jugarmos os outros deveremos julgar a nós mesmos, para que nossos erros sejam menores e, idealmente, não se repitam.

Seria interessante crer que haverá líderes e pessoas influentes lembrando-se dos ensinamentos históricos, evitando com que o hedonismo prevalente nas elites mundiais ditem a decadência civilizatória que, em certos pontos do planeta, já se começa a notar.

 

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