Kissinger: incontornável até o fim

Ontem faleceu Henry Kissinger, aos 100 anos de idade.

Tornou-se famoso desde a época em que foi nomeado Conselheiro para a Segurança Nacional e depois Secretário de Estado do governo de Richard Nixon, ao final da década de 1960.


70% das mídias tradicionais de notícias (que consegui analisar) informam sua morte construindo um obituário obscuro, muito negativo. Como alguém que o acompanhou desde criança pelos jornais e conversas de família, entendo ser normal criticá-lo, mas o exagero indica superficialidade de conhecimento e contexto pelas editorias internacionais que o caracterizam negativamente.

Esse acadêmico, transformado político altamente complexo é, sem dúvida alguma, se não o único, um dos principais pais da paz mundial experimentada no longo período desde a guerra fria até o dia de ontem, que nos beneficiou a todos nesse planeta.

O jovem judeu conseguiu fugir da Alemanha nazista com a família após ser espancado na escola e seu pai ter perdido o emprego, em vista das antisemitas Leis de Nuhremberg. Chegou como refugiado aos Estados Unidos em 1938. 

Ele abraçou sua nova cidadania integralmente, tornando-se um defensor implacável dos interesses norte-americanos que significavam, para ele, a bússola mais bem calibrada de sua era. Foi testado em sua fidelidade aos EUA em todos os momentos, resistindo a todas as tentativas de o desmoralizarem.

Ambicioso e capaz, tornou-se em poucos anos um acadêmico respeitado após diplomado em Harvard, em 1954. Sua tese foi transformada em livro, sendo intitulada A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-1822, publicada em 1957.

Kissinger atuou sem timidez em vários momentos cruciais da humanidade. Seu legado é incrivelmente positivo, tanto que seu falecimento foi lamentado por todos os líderes do planeta, muitos dos quais são inimigos de seu país de adoção. 

Ele personificou a diplomacia como ato mais nobre para evitar-se a guerra total, ainda que sua Realpolitik (prática, de resultados, realista e não utópica) tenha detratores tanto na política, quanto na imprensa e na academia.

Aqui expresso meu entendimento, minha percepção, a respeito da atuação desse grande diplomata sobre eventos históricos. Faço-o sob a perspectiva não-preconceituosa de quem teve e tem absoluta dimensão do que significou a Guerra-Fria e a ameaça totalitária comunista ao Ocidente (algo hoje pouco conhecido, relativizado por uma narrativa revisionista, historicamente falsa e superficial).

Vietnã: não há dúvida que, não sendo um político eleito ou de carreira, Kissinger não hesitou em assumir a autoria e a responsabilidade pelo bombardeio de áreas periféricas ao conflito, como estratégia de guerra. É evidente que ele não tomou tais decisões sozinho, mas sua capacidade de convencimento certamente orientou as ações dos EUA, castigando o Camboja. 

A atuação militar americana no Vietnã foi um fracasso por diversas razões, sendo leviano acusar apenas uma ou outra decisão política ou militar. Aquela guerra traumatizou os EUA e reduziu suas zonas de influência. Seu ocaso coincidiu com eventos internos nos EUA que vão muito além da geopolítica, como o Watergate, que enfraqueceu imensamente a união nacional contra a ameaça comunista naquele ponto remoto do planeta, cuja importância logística superava a política.

Deposição de Salvador Allende no Chile: muito antes de Pinochet tornar-se o ditador do Chile, os EUA já tinham se embrenhado no apoio a movimentos anti-comunistas na América Latina após Fidel Castro ter-se tornado o ditador sanguinário em Cuba, em 1959. O risco soviético foi experimentado com a crise dos mísseis em 1963 e JFK, e seu sucessor LBJ autorizaram golpes de estado e defesa da economia de mercado em toda a região, como no Brasil em 1964. 

Kissinger chegou atrasado historicamente nessa tendência da defesa da economia de mercado na região iniciada após o golpe em Cuba. Aderiu aos estrategistas da política de conter o avanço da ameaça totalitária comunista, não tendo a inaugurado. É evidente que abraçou, integralmente, a política construída nos anos 1950, época de sua formação acadêmica e amadurecimento, em que comunistas eram perseguidos como traidores dos EUA, havendo julgamentos famosos mediatizados na esteira do Macartismo. Ele é fruto daquela época, mas evoluiu incrivelmente até sua morte.

Guerra do Yom Kippur: Kissinger foi o grande arquiteto do fim da guerra em 1973, convencendo o Egito a reconhecer a existência de Israel, mobilizando ainda vários países árabes por meio da força e do convencimento, com incitativos econômicos. O financiamento da prosperidade da região ocorreu mediante brutal ajuste no mercado de petróleo. Os petrodólares inundavam os EUA e a Europa, emprestados originalmente a baixos juros, mas a explosão do preço do petróleo causou uma inflação enorme acompanhada pela explosão dos juros. A consequência foram a falências e problemas econômicos em todos os países, mas sobretudo a América Latina, altamente endividada em dólares que se tornaram caríssimos, com dívidas impagáveis.

Aproximação com a China: Kissinger foi o arquiteto da prosperidade internacional chinesa. Foi ele, autorizado por Nixon, que quebrou o ciclo de hostilidade e mística negativa com a China. Tanto que o ditador daquele país o recebeu em julho de 2023, ciente da importância da diplomacia para manter interesses por vezes antagônicos sob controle em vista dos benefícios possíveis. 

Não tenho dúvidas que a visita de Kissinger a Xi Jinping foi algo muito além do simbólico. Ele jamais perdeu tempo com brevidades e platitudes. Cada gesto e palavra tinham significado em se tratando de Henry. 

Hoje em dia a maioria do que se fala e escreve é mero barulho, lixo. Jovens raralmente prestam atenção na inundação de palavras que lhes rodeiam, havendo volume, mas não conteúdo. Não era o caso de Kissinger, um comunicador diplomata que aprendeu e ensinou a importância de cada expressão, palavra e gesto, todos com consequências, quando mal postadas.

Ao meu ver, portanto, Henry Kissinger buscou garantir, até o dia da sua morte, a estabilidade mundial, tendo acesso aos grandes líderes do planeta, repito, ainda que inimigos entre si. Isso expressa a essência da diplomacia, uma arte pouco conhecida nos dias de hoje, em que o radicalismo faz notícia e cabeças, sem senso prático ou razoabilidade.

Seu legado é incomensurável e não pode ser diminuído. Se ele cometeu erros, o que certamente ocorreu, foram cometidos coletivamente, já que sem votos, Kissinger sabia muito bem o seu lugar e suas limitações.

Aos jovens interessados em relações internacionais sugiro lerem tudo escrito por e a respeito desse monstro da diplomacia. 

Os diversos níveis, andares de interesses e ações que habitam as relações internacionais foram por ele desenvolvidos com maestria. 

Aprender tais nuances, mesmo as mais imperceptíveis, é receita necessária para guardar-se paz no mundo, ainda que seja com armas apontadas uns para os outros. Ele sabia que a percepção é tão importante quanto a realidade, bem como os jogos de bastidores, os diálogos longe dos holofotes.

Certas editorias não apreciam o legado desse diplomata. Assumem um pacifismo superficial e utópico, resultado da própria fraqueza. E a fraqueza é a receita para ser dominado, como Henry Kissinger sabia muito bem, tendo sido um forte.

Ele fará muita falta, mas seus ensinamentos persistirão.







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