Camus, artistas e o compromisso com a verdade e a liberdade

 Essa semana completam-se 65 anos do marcante discurso de Albert Camus em Estocolmo, quando do recebimento do Prêmio Nobel de Literatura de 1957. Camus tinha meros 44 anos à época, pouca idade para tanta envergadura e reconhecimento.



Sua maturidade moral e intelectual já era avançada quando do prêmio. 

Seu discurso de agradecimento é um estrondo, uma catarse. Os valores expostos por Camus formam um mapa, oferecem bússola sobre como pensar e agir eticamente, merecendo ser lido e relido, sobretudo pelas classes artística e jornalística, que tanto influenciam e podem agregar a uma sociedade. Foram ofícios aos quais Camus dedicou sua curta vida, posto que vitimado em acidente de carro dois anos depois. 

Tive o privilégio, ainda em tenra idade, de ler no original (e posteriormente reler, com certa maturidade) seus escritos como O Estrangeiro, A peste, e O mito de Sísifo. Obras profundas, necessárias.

Nos tempos atuais, revisitar, atentar às palavras sensatas de quem possuía como únicos compromissos de ofício a verdade e a liberdade, ajudará a navegar época em que o senso comum parece manifestar-se apenas em tons pastéis.

O discurso original de Camus é encontrado aqui.

Já a tradução, com minhas marcas para reflexão, segue abaixo:

Ao receber a distinção com a qual vossa livre Academia gentilmente honrou-me, minha gratidão foi tão profunda que eu mensurava a que ponto essa recompensa ultrapassaria meus méritos pessoais. Todo homem e, por uma razão mais forte, todo artista, deseja ser reconhecido. Eu o desejo também. Mas não me foi possível compreender sua decisão sem comparar suas repercussões ao que sou realmente. Como um homem quase jovem, rico apenas de suas dúvidas e de uma obra ainda em construção, habituado a viver na solidão do trabalho ou nos retiros da amizade, não teria tomado com certo pânico um acórdão que o levou, de súbito, sozinho e reduzido a si mesmo, ao centro de uma luz ofuscante? Com quais sentimentos também poderia receber essa honra em um momento em que, na Europa, outros escritores, dentre os maiores, são reduzidos ao silêncio, e ao mesmo tempo em que sua terra natal conhece um infortúnio incessante?

Conheci essa confusão e esse tumulto interior. Para reencontrar a paz, foi-me necessário, em suma, alinhar-me a um destino muito generoso. E, já que não podia me igualar a ele, apoiando-me apenas em meus próprios méritos, não  encontrei nada para me ajudar, além daquilo que me sustentou, ao longo de toda a minha vida e nas circunstâncias mais adversas: o conceito que tenho sobre minha arte e o papel do escritor. Permitam-me apenas que, com um sentimento de reconhecimento e amizade, eu lhes diga, tão simplesmente quanto puder, qual é essa ideia. 

Pessoalmente, não poderia viver sem a minha arte. Mas nunca coloquei essa arte acima de tudo. Se ela me é necessária, ao contrário, é porque ela não se separa de ninguém e me permite viver, tal como sou, no mesmo nível de todos. A arte não é, aos meus olhos, um regozijo solitário. Ela é um meio de comover o maior número de homens, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos  sofrimentos e das alegrias comuns. Ela obriga, então, o artista a não se isolar; ela o submete à verdade mais humilde e mais universalE aquele que, frequentemente, escolheu seu destino de artista porque se sentia diferente, aprende bem rápido que ele não alimentará a sua arte, e sua diferença, de outra forma que confessando sua semelhança com todos. O artista se forja dentro desse ir e vir perpétuo de si aos outros, a meio caminho da beleza que ele não pode dispensar e da comunidade da qual ele não pode se arrebatar. É, por isso, que os verdadeiros artistas não desprezam nada; eles se obrigam a compreender em vez de julgar. E, se eles têm um partido a tomar nesse mundo, não pode ser outro que não aquele de uma sociedade onde, de acordo com a grande palavra de Nietzsche, não reinará mais o juiz, mas o criador, seja ele trabalhador ou intelectual.

O papel do escritor, ao mesmo tempo, não se separa dos deveres árduos. Por definição, ele não pode colocar-se ao serviço daqueles que fazem a história: ele está ao serviço daqueles que a sofrem. Ou, caso contrário, ei-lo sozinho e privado de sua arte. Todos os exércitos da tirania com seus milhões de homens não o demoverão da solidão, sobretudo se ele consentir a acompanhá-los. Mas o silêncio de um prisioneiro desconhecido, abandonado às humilhações do outro lado do mundo, deve bastar para retirar o escritor do exílio, cada vez, ao menos, que ele consegue, dentre os privilégios da liberdade, não esquecer este silencio e fazê-lo ecoar por meio da arte.

Nenhum de nós é grandioso o suficiente em tal vocação. Mas, conforme todas as circunstâncias de vida, obscuro ou provisoriamente célebre, lançado à violência da tirania ou temporariamente livre para se exprimir, o escritor pode reencontrar o sentimento da comunidade viva que o justifique, à única condição que aceite, tanto quanto lhe seja possível, os dois ônus que constituem a grandeza de seu ofício: servir à verdade e à liberdade. Já que sua vocação é reunir o maior número de homens possível, ela não pode admitir a mentira e a servidão que, onde habitam, proliferam solidõesQuaisquer que sejam as nossas enfermidades pessoais, a nobreza do nosso ofício sempre se enraizará em dois compromissos difíceis de observar: a recusa de mentir sobre o que sabemos e a resistência à opressão.

Por mais de vinte anos de uma louca história, perdido e sem ajuda, como todos os homens de minha idade, nas convulsões do tempo, fui sustentado da seguinte forma: pelo sentimento obscuro de que escrever atualmente seria uma honra, porque esse ato obrigaria, e obrigaria não apenas a escrever. Ele me obrigaria particularmente a carregar, como eu era e segundo minhas forças, com todos aqueles que viviam a mesma história, o infortúnio e a esperança que partilhávamos. Tais homens, nascidos no começo da primeira guerra mundial, com vinte anos ao momento em que se instalavam, ao mesmo tempo, o poder hitleriano e os primeiros processos revolucionários, que foram confrontados em seguida, compondo sua educação, à guerra da Espanha, à segunda guerra mundial, ao universo concentracionário à Europa da tortura e das prisões, devem, hoje em dia, criar seus filhos e suas obras em um mundo ameaçado pela destruição nuclear. Ninguém, eu suponho, pode lhes exigir de serem otimistas. E eu sou da mesma opinião que nós devemos compreender, sem cessar de lutar contra eles, o erro daqueles que, por uma desmesura de desespero, reivindicaram o direito à desonra, e sucumbiram aos niilismos da época. Mas resta que a maior parte de nós, no meu país e na Europa, recusaram esse niilismo e saíram em busca de uma legitimidade. Foi-lhes necessário forjarem-se uma arte de viver em meio à catástrofe, para nascerem uma segunda vez, e lutarem em seguida, com o rosto descoberto, contra o instinto de morte em curso em nossa história.

Cada geração, sem dúvida, crê-se fadada a refazer o mundo. A minha entretanto, sabe que ela não o refará. Mas sua tarefa, talvez, seja maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrompida onde se confundem as revoluções decaídas, a técnicas que se tornaram malucas, os deuses mortos e as ideologias extenuadas, onde poderes medíocres podem, hoje, tudo destruir, mas não sabem convencer, onde a inteligência rebaixou-se até se tornar serva do ódio e da opressão, essa geração teve de, ela e em torno de si mesma, restaurar, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que constitui a dignidade de viver e de morrer. Frente a um mundo ameaçado de desintegração, onde nossos grandes inquisidores arriscam estabelecer para sempre os reinos da morte, ela sabe que deveria, em uma espécie de corrida louca contra o relógio, restaurar entre as nações uma paz que não seja aquela da servidão, reconciliando novamente trabalho e cultura, e refazer com todos os homens uma arca da aliança. Não é certo que ela não possa jamais realizar essa tarefa imensa, mas é certo que, por todo o mundo, ela já sustente sua dupla aposta de verdade e liberdade, e, oportunamente, por si saiba morrer sem ódio. Ela merece ser saudada e encorajada por onde estiver, e sobretudo lá onde ela se sacrifica. É sobre ela, de qualquer modo que, certo de vosso total acordo, eu gostaria de relatar a honra que vocês acabam de me conceber.

Ao mesmo tempo, após ter falado sobre a nobreza do ofício de escrever, eu terei recolocado o escritor no seu lugar verdadeiro, não havendo outros títulos que aqueles que ele compartilha com seus companheiros de luta, vulnerável mas obstinado, injusto e apaixonado por justiça, construindo sua obra sem vergonha nem orgulho à vista de todos, sempre divido entre a dor e a beleza, e dedicado, enfim, a extrair de seu duplo ser as criações que ele tenta, obstinadamente, edificar dentro do movimento destrutivo da história. Quem, após isso, poderia esperar dele soluções prontas e belas morais? A verdade é misteriosa, elusiva, sempre a se conquistar. A liberdade é perigosa, tão dura de viver quanto exaltante. Nós devemos caminhar para esses dois fins, penosamente, mas resolutamente certos, de antemão, de nossas falhas sobre um tão longo caminho. Qual escritor, nesse momento ousaria, em boa consciência, fazer-se pregador de virtude? Quanto a mim, devo dizer uma vez mais que não sou nada disso. Nunca pude renunciar à luz, à felicidade de ser, à vida livre onde cresci. Mas, apesar dessa nostalgia explicar muitos de meus erros e de minhas falhas, ela me ajudou, sem dúvida, a melhor compreender meu ofício e me ajuda ainda a manter-me, cegamente, perto de todos esses homens silenciosos que não aguentam, no mundo, a vida que não seja de lembranças ou de retorno a breves e livres felicidades.

Levado assim àquilo que sou realmente, aos meus limites, às minhas dívidas, bem como a minha difícil fé, sinto-me mais livre de vos mostrar, para terminar, a extensão e a generosidade da distinção com que me concederam, mais livre para vos dizer que gostaria de recebê-la como uma homenagem a todos aqueles que, partilhando o mesmo combate, não receberam qualquer privilégio e sim conheceram o infortúnio e a perseguiçãoRestar-me-á então vos agradecer, do fundo do meu coração, fazendo-o publicamente, em testemunho pessoal de gratidão, a mesma e antiga promessa de fidelidade que cada artista verdadeiro, cada dia, faz a si mesmo, no silêncio.

Para interessados e curiosos, há um belo filme contando a história do escritor que pode ser assistido clicando aqui.


Mais lidos

Mentiras de Estado

Com ou sem máscara?

Ditadura do Judiciário exposta: Congresso Norte-Americano

A democracia-ditadura: o poder sem representação

Um texto magistral para a magistratura brasileira

Manipule e influencie os jovens: eles poderão ajudar no esforço destrutivo de amanhã