A Era da Monarca e seu fim

Enquanto escrevo essas linhas, constato com pesar que a monarca Elisabeth II está em seu leito de morte, ladeada por membros de sua família, segundo informam as agências de notícia. Tudo se prepara para a partida dessa servidora britânica.

Ainda que a chefe de estado de vários países, como Reino Unido e Canadá, não tenha agido diretamente para governar e alterar o destino desses mesmos, já que ditado por suas populações e seus políticos, foi durante sua era que o mundo experimentou o melhor da história humana.


Tendo tomado posse em 1952, a jovem monarca foi contemporânea da reconstrução européia, que culminou inclusive na união dos países formando a atual União Européia. Em geral, a Europa usufruiu de grande paz durante todo seu reinado, o pós-guerra tendo sido chamado de anos gloriosos em razão do otimismo e crescimento econômico com inclusão social. Os conflitos europeus (sobretudo na vizinha Bósnia, e agora na Ucrânia) não podem ser negligenciados, sendo entretanto inegável que grande parte da população do continente e das ilhas britânicas gozou de relativa paz. Em seu reinado, note-se que os irlandeses do norte e os argentinos sentiram a mão de ferro do poder e das armas modernas britânicas, assim como vários países árabes, africanos e asiáticos.

Colônias africanas e asiáticas conquistaram sua independência. Liberdades individuais (inclusive sexual e feminina) floresceram dentro do espectro inclusivo e de diversidade, livre da divisão atual que antagoniza nós eles e anda implodindo pontes dedicadas ao diálogo. Na era da monarca, nas artes o rock e o movimento Punk ofereceram ao mundo alternativas, novos sons e experiências, assim como o desenvolvimento do show business e a lastimável popularização dos entorpecentes ao nível descontrolado em que hoje se encontra.


Foi ainda a era dos grandes deslocamentos humanos, das viagens por turismo, negócio e migrações (incluindo refugiados), bem como da ida do ser humano a todos os confins do planeta, do sistema solar e do fundo do mar. 

Em sua era a Carta das Nações Unidas firmou a noção dos Direitos Humanos, com tribunais sendo criados para estabelecer melhores balizas, interpretando o real significado do que precisa um ser humano para viver dignamente. A fome dizimou milhões, sobretudo na África subsahariana e ditadores, apoiados por ex-colonizadores como a própria Inglaterra e organizações internacionais, destruíram povos, culturas, regiões e sonhos. Ainda assim, em seu reinado o mundo passou de 1 bilhão para quase 8 bilhões de habitantes...

Os avanços tecnológicos da Era da Monarca foram estonteantes. O circuito eletrônico substituiu a válvula, a miniaturização de aparelhos e motores permitiu confortos e luxos, mas também armas sofisticadas. Nessa era o microcomputador invadiu as vidas das pessoas, tendo sido reduzido ao tamanho da palma da mão,  representado por um celular capaz de se transformar em escritório móvel para qualquer ofício.

Os últimos 70 anos foram marcados pela aproximação das nações pelo comércio, pelas migrações, pela comunicação. O idioma inglês virou língua franca, facilitando negócios e estudos, inclusive a circulação do saber e acesso às informações. Em geral, o avanço foi imenso sem um conflito na proporção de uma grande guerra mundial, que durante seu reinado, não aconteceu.

Só que essa era acabou. O glamour também acabou.

A Monarquia em si é uma instituição incompatível com o avanço social e tecnológico que vivemos. Escândalos íntimos envolvendo Charles e Camilla, com o inescusável abuso de Diana, bem como atos do pedófilo Andrew, apenas comprovam que se trata de seres humanos ordinários, merecedores da mesma insignificância que qualquer cidadão comum.

A família real é relíquia viva, em que personagens de museu de cêra ganham vida e frequentam colunas de jornais, para que leitores apreciem fofocas e futilidades próprias a quem possui vida vazia e tediosa. O necessário requestionamento da necessidade de existência da monarquia ocorrerá fortemente, no curto prazo. Ele precisará ser frutífero.

Países do Caribe, como Belize, Bahamas, Jamaica, Granada, Antigua e Barbuda, e St. Kitts e Nevis vêm sinalizando há anos o desejo de adotarem o sistema constitucional republicano, ao invés de manterem a monarquia constitucional adotada desde que deixaram de ser colônias. Talvez esse seja o momento de também o Canadá, Austrália e outros países encerrarem vínculos com uma instituição milenar ultrapassada, inútil.

Talvez o legado da Rainha Elizabeth II seja o de tornar-se a última monarca para muitos povos mundo afora, sepultando a herança colonial. 

A inutilidade prática da família real parece inegável aos que reconhecem ter apenas legitimidade a representação popular, abolindo-se poderes hereditários.


Esta senhora que está concluindo 70 anos de "função pública" poderia representar, especialmente sendo mulher, um passo significativo na libertação humana de tradições retrógradas, meramente formais, onerosas e fundamentalmente inúteis. Assim, seus familiares usufruirão de paz, podendo ainda faturar muito dinheiro com suas memórias e palestras, continuando a viver do passado, sob olhares apenas dos que desejam ter mais uma opção ao canal do Big Brother.



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