Brasil e a OCDE na América Latina: um possível fracasso?

Insurjo-me contra correntes majoritárias, quando entendo que possuem premissas falsas. Assim, ouso questionar. Ouso inclusive verbalizar tal questionamento, o que por vezes pode causar reações exacerbadas, sobretudo por parte dos dogmáticos, dos adeptos a verdades absolutas.

Isso remete-me à ótima charge do Quino (inventor da sensacional Mafalda):


Um assunto até hoje limitado aos corredores do Planalto tem surgido na mídia e na academia brasileiras, nos últimos meses: a adesão do Brasil à OCDE. Desde que o Min. Paulo Guedes tem-se reunido com membros da organização, o assunto tem sido citado, mas ainda permanece periférico, superficial, estéril.

Adotar regras de países ricos, abandonando originalidade e autonomia, para atrair negócios e investimentos, faz parte da triste história brasileira.

Eu tenho estudado, há mais de 30 anos, a importação de regras por países emergentes, por meio de uma disciplina e técnica denominada Direito Comparado. Vários transplantes legais serviram a propósitos nobres e úteis não podendo ser, a priori, considerados ruins ou malévolos.

O cheque, por exemplo, foi unificado no mundo por meio da adoção de um modelo não definido no Brasil. E isso foi bom. Do mesmo modo ocorreu a normatização unificadora para marcas e patentes. Várias iniciativas internacionais criando uma só mecânica de comércio e classificação de elementos, atos e transações foram extremamente úteis para permitir trocas, assim melhorando seu conhecimento mútuo e esforços de manutenção da paz por meio da interdependência entre nações. Esse post não trata disso.

E não utilizarei esse espaço para tecer considerações complexas a respeito das teorias de Direito Comparado, já que restrinjo isso a publicações científicas.

Meu objetivo aqui visa vulgarizar conceitos complexos, torná-los acessíveis a leitores comuns, não formados em Direito. RI, Economia ou sem curso superior. 

Quero sensibilizar o leitor atento para riscos à soberania brasileira que a adesão às regras da OCDE (e a qualquer outro organismo estrangeiro) poderá significar.

Trata-se de um mero alerta. 

É possível que a adesão à OCDE ocorrerá, se considerarmos o histórico brasileiro de absorção de regras estranhas ao seu ordenamento visando melhorar sua imagem e trocas com o exterior, a despeito do déficit democrático que isso tem representado. 

Jocosamente, ouso inclusive dizer que a adesão a regras estrangeiras (e à OCDE...) adviria também de certa preguiça da elite política e empresarial nacional. Estes seriam preguiçosos em criar regras de governança adequadas ao cenário brasileiro, que levariam em conta a complexidade e diversidade desse país, que conhecem muito melhor do que qualquer burocrata instalado nos Champs Elisées ou no National Mall. A preguiça também contaminaria parte da elite acadêmica, que adora viajar ao exterior e homenagear as civilizações do além-mar... ao invés de buscar soluções locais, para desafios locais.

Delegar a estrangeiros a gestão do seu destino e de seus sonhos tem sido uma máxima brasileira, inclusive para, vez ou outra, culpá-los pelos males tupiniquins. É conveniente.

Entendo que aderir à OCDE, sem profundas e sérias reservas (mecanismo próprio de proteção da soberania, previsto em qualquer tratado para dar validade à vontade soberana, em Direito Internacional), significa negar validade à democracia representativa.

Delegar a gestão e o desenho das instituições do país a burocratas qualificados (talvez até boas pessoas e profissionais, dependendo do ponto de vista), mas desprovidos de qualquer compromisso ligado à representatividade democrática, importa em grande perigo. Tais burocratas devem, em grande parte, lealdade a políticos e pares que lhes permitiram alcançar postos elevados na hierarquia nacional e internacional, sobretudo se tais cargos não importam em autonomia (aliás, que a OCDE prega, sendo um ponto positivo post factum). 

Vários autores, na história da governança pública e de economia, alertam para a realidade cruel e perversa das organizações de estado e seus ocupantes capturados por interesses pontuais. São autores inconvenientes, confesso...

Há uma noção de Direito Internacional importante para compreender a lógica das regras da OCDE. Qualquer pessoa que negociou algo na vida vai entender o conceito a seguir.

Há países denominados FAZEDORES DE REGRAS (Rule Makers), sofisticados, poderosos (militar, econômica e geopoliticamente), que se sentam em várias mesas de negociações diplomáticas internacionais. Esses países souberam e ainda sabem impor suas regras, seus modelos de organização política e econômica a boa parte do mundo.

Há o resto dos países do mundo, TOMADORES DE REGRAS (Rule Takers),  que aderem a regras feitas por países com os quais desejam fazer negócio, vender suas commodities, obter favores e ficar bem os olhos de quem realmente manda.

Resultado: quem manda, faz as regras. E quem faz as regras jamais as faz com a intenção de abdicar ao próprio poder. Bem ao contrário: quem faz regras deseja manter-se no centro da ação, eternizando-se no poder, tornando todos os outros dependentes de si próprio. 



E o mundo é assim desde tempos imemoriais, ainda que em Direito Internacional diga-se que todos e cada um dos países são juridicamente iguais, pares na cena internacional...

O Brasil integra diversos organismos e organizações internacionais. Isso cria uma ilusão de participação ativa. Seus representantes vão a conferências, participam de debates, frequentam coquetéis, distribuem presentes e sorrisos, mas não possuem poder suficiente para influenciar as regras que serão produzidas, as normas de conduta que pautarão o mundo de amanhã. Isso se aplica a todos os outros países emergentes (ou seja, àqueles que almejam um dia transformarem-se em países ricos, em influencers, em Rule Makers). Doce ilusão.

É quase inexistente a voz ativa e influente brasileira sobre a comunidade internacional. Muito menos sobre os países ricos. O Brasil é admirado pelo seu gigantismo apenas, tendo restrita e limitada soft power.

Provoco: será o Brasil quem determinará quando e como será feita a transição ecológica, a liberalização do comércio agrícola, as regras de tributação internacional sobre dinheiro sujo? Serão o Brasil e seus aliados emergentes, como Índia, Rússia e China, com toda a instabilidade política, a polarização, a violência que lhes marcam a história? Ou continuará a ordem vigente entre poderosos e débeis?


É fato que o Brasil não é exemplo para o mundo em matéria de governança ou estado de direito. Suas instituições estão repletas de nobres intocáveis, poderosos que recebem salários e aposentadorias obscenos. Nem por isso precisa abdicar de sua soberania aceitando um neocolonialismo regulatório como representado, se feito sem reservas, pela adesão subordinada à OCDE.

É claro que haverá argumentos favoráveis à adesão à OCDE. Há diversos elementos positivos, mas quando li o relatório regulatório indicando as mazelas brasileiras, sorri. Vivo no Canadá há 14 anos, vivi e estudei no Reino Unido, bem como na França, países que são profunda e tradicionalmente protecionistas em vários segmentos. Não encontro autoridade no relatório para se considerar com seriedade absoluta críticas e diagnósticos ali expostos.

Finalizando, para esse post não ficar enfadonho: quais são mesmo os países da OCDE na América Latina?

Fora a Costa Rica, que possui um histórico de subordinação aos EUA, podemos identificar Colômbia, Chile e México.

E o que aconteceu nas últimas eleições nesses 3 países? Será que se elevaram ao nível dos países fundadores da OCDE?

Não. 

Eles bandearam à esquerda, seus cidadãos (novamente) sucumbindo ao discurso socialista de candidatos populistas, demonstrando revolta ao status quo.

O voto foi (parcialmente, é claro) contra a recepção progressiva e inquestionada de regras estrangeiras , que passam a definir a organização local. Ocorreu ali a adoção de modelos estranhos à realidade local, acessíveis apenas aos que falam idiomas estrangeiros, à elite que se metamorfoseia como oligarquia, sob diversas denominações.


A clareza cristalina do déficit democrático representado pelo redesenho das instituições nacionais por força da adesão a regras e princípios estrangeiros é patente. 

Basta querer enxergar.

Será que o Brasil dos que possuem voz e poder (e não o Brasil que, novamente, sofrerá os impactos de uma adesão - por modismo - a transplantes regulatórios estrangeiros) refletirá sobre o que realmente significa aderir à OCDE?

Por fim, convido o leitor/a leitora a ouvir clips de minha palestra proferida aos alunos de pós-graduação da FUMEC em março passado. Basta clicar para abrir e ver um clip (e se quiser, no próprio Youtube, assistir ao vídeo completo da palestra).

Reservas para uma adesão à OCDE? Onde? Quando? Clique aqui.

Alegoria na pergunta: entrando na OCDE, o Brasil vira país rico? Clique aqui.

Por quê a adesão à OCDE é um perigo, sobretudo ao brasileiro comum? Clique aqui.

Contrassenso: governo nacionalista, da Pátria Amada, desejando renunciar tão profundamente à soberania? Clique aqui.

A OCDE pode ser um perigo, se não for bem analisada. Clique aqui.

A provocação à reflexão é convite ao bom debate por todos aqueles que prezam e zelam pelos destinatários das normas.

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