Federalismo, enfim

    A pandemia está demonstrando, de forma inequívoca, o quão importante são as fronteiras. Estivemos acostumados a viajar rapidamente, por longas distâncias, até recentemente, sem nos preocuparmos muito com aspectos políticos ou sanitários. Vivemos em um país cujas leis são válidas homogeneamente em todo o território, apesar de reconhecermos as imensas diferenças regionais que vão muito além do sotaque, do tempero ou do clima. Chamamos o Brasil de uma República Federativa, mas temos pouca noção do que isso realmente significa.

                Nem sempre foi assim. A memória nacional, ainda que amarelada, nos remete ao tempo em que os estados tinham presidentes e grande autonomia política, fiscal e até mesmo militar. Getúlio Vargas deu o primeiro golpe institucional nesse sentido, concentrando poderes e desmontando a independência dos estados. Vargas inaugurou o início irreversível do distanciamento entre mandatário público e eleitor, sendo aderente de primeira hora da doutrina totalitária, escondido por detrás do populismo sindical.

                Brasília e, posteriormente, o regime militar inaugurado em 1964, adicionaram outro prego no caixão do federalismo, intensificando a distância entre poder e cidadão. Pensando grande e impondo a doutrina da segurança nacional, conduziram o país pensando em ameaças de internacionalização sobretudo da Amazônia, numa era de Guerra Fria. O regime impos uma lógica representativa desproporcional, facilitando-lhe o controle social e as barganhas políticas, por meio do esvaziamento qualitativo de um Congresso amedrontado ou submisso. Uma vez implantado o sistema paritário representativo por estados, este passou a escravizar os destinos da maior parte do povo brasileiro, que desde então é refém da deletéria sub-representação crônica.

                A Constituição de 1988 tampouco ajudou. Na verdade, ela piorou o que já estava ruim. Arvorando-se o título de salvadores da pátria, os constituintes influentes jamais compreenderam o real significado da democracia lá do alto de seus palanques, verdadeiras catapultas às suas décadas no poder. Estruturaram a Nova República concentrando ainda mais atribuições políticas e fiscais no ente federal, sobretudo no funcionalismo regiamente remunerado e inatingível, ferindo de morte resquícios da autêntica autodeterminação regional. A suposta integração nacional promoveu a migração de montanha de recursos e poderes do centro à periferia, sempre sob gestão federal, cooptando lideranças regionais. Estaria aí o embrião da explosão dos casos de corrupção desde que os militares deixaram o poder.

                O momento pandêmico, pelas constatadas dificuldades de articulação sanitária, econômica e política em nível nacional, demonstra a impossibilidade em se manter o status quo. Um novo pacto federativo, eterna figura de retórica no meio político, precisa ser abraçado por governadores dedicados, ainda que seja na marra. Cada estado da federação necessita repatriar seus próprios poderes, seus recursos e uma capacidade de priorizar demandas da população, estas necessariamente diversas de região para região, provando a inviabilidade de a União manter-se imutável e inatingível.

                A bem da verdade, não existe vocação de união nacional ao Brasil. O que há é a soma de micro-vocações encontradas em cada região, algumas delas concorrentes, outras complementares. Negar tal realidade é insistir em um erro que está dissolvendo o país, criando desagregação e desigualdade, empobrecendo-o.

            Resta saber se os atuais governadores, ligados a partidos de projeção ou expectativa de projeção nacional, terão a coragem de colocar seus eleitores acima do projeto de poder das agremiações. A agenda proposta nesse artigo exige reflexão e coragem, mas não me parece longe de ser absolutamente legítima. O governado hoje deve exigir de seu governador a priorização de sua própria população, com elementos de proximidade e atenção às necessidades locais.

                O que não deveria mais ser passivamente aceito é um governo federal com poderes e recursos imensos, oriundos de estados que produzem riqueza, cujos governadores são obrigados a viajar de pires na mão ao poder central, solicitando renegociação de dívidas e favores, em troca de apoio local. A integração nacional deveria ser promovida por meio de recursos orçamentários extraordinários, não o contrário.

                Um novo pacto federativo corajoso e necessário deveria efetivamente sair da retórica para entrar na história. A pandemia só serve para comprovar a utilidade e urgência dessa proposta. Será que os atuais governadores enxergariam essa oportunidade, promovendo o bem-estar durável de seus cidadãos?

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