Aos socialmente sensíveis


David, meu saudoso e amado tio, carinhosamente apelidado de Dodo, escolheu a profissão que tinha direta relação com suas próprias convicções políticas: a oftalmologia. Ele ajudou milhares de pessoas a enxergar. Tinha como missão fazer enxergar, independentemente de credo, cor, filiação política, gênero, etc.

A ele bastava isso: ajudar os outros a verem.

Detalhe: ele não desejava impingir qualquer convicção ou convencer pessoas à sua volta a verem o mundo como ele mesmo via. Com carinho, apenas convidava a todos com quem convivia, e a quem tratava, a fazerem algo muito simples: "veja, e se puder, veja bem e com amor, com arte".

Dodo nasceu em 1912, portanto antes da Revolução Russa, em uma família classificada como burguesa, à época. Como filho caçula, foi cercado de mimos e tinha confortos materiais que, em meio à população da região em que vivia, na Romênia (ainda integrante do Império Austro-Húngaro), sabia-se privilegiado. Sua (minha) família era dona de um moinho de trigo e Dodo teve acesso a excelentes estudos e frequentou um meio intelectual ímpar, do qual saíram vários poetas, escritores e filósofos, tais como Manès Sperber, Paul Celan...

Menino sensível, atento ao que se passava à sua volta, à discrepância entre a qualidade de vida dos trabalhadores (inclusive os que trabalhavam para meus antepassados) e dos donos dos meios de produção (como em nossa família), rapidamente sensibilizou-se para a causa social e para a questão de classes.

Sua mãe, Rosa, uma senhora de personalidade irascível, pertencia a uma geração que aceitava e impunha o determinismo Darwinista à sua volta. Mulher dura, Rosa entendia que os pobres deveriam resignar-se a tal condição, devendo ser necessário ajudar-lhes, mas que seria inútil questionar a desigualdade, especialmente estando do lado favorecido da balança. Isso não caía bem ao jovem Dodo, a despeito de todo o amor dedicado à sua mãe.

Naquele tempo, o Marxismo invadia os meios intelectualizados e proletários europeus, com igual vigor.

Dodo tornou-se, assim como diversos jovens bem formados e sensíveis de sua época, um comunista de primeira hora.

Associou-se e passou a participar ativamente de atividades de grupos comunistas em sua cidade natal, Czernowitz (região da Bukovina, que após a segunda guerra ficou dividida entre Ucrânia e Romênia), para horror de sua família. Tratava-se de negar, na visão daqueles, todas as benesses que aquela família havia conseguido conquistar com o esforço incansável de algumas gerações: não era justo compartilhar com proletários a riqueza conquistada a duras penas e da qual gozavam.

Dodo engajou-se socialmente, desde muito jovem.

As atrocidades da Primeira Grande Guerra marcaram sua infância, pois sabia que os nobres e burgueses não iam ao Front. Quem era lançado ao sacrifício era geralmente gente simples, massacrada por armas convencionais e químicas. Ele não poderia ter ficado insensível a tudo isso.

Os discursos e propósitos iniciais da Revolução Russa caíram como uma luva na mente do jovem Dodo. Como não aceitar que o proletário, a classe operária, exaurida de dignidade e confortos mínimos de vida, não pudesse partilhar da prosperidade de que o próprio Dodo gozava?

Assim como Arthur Koestler, Dodo virou comunista convicto e jogou-se de corpo e alma na causa social. O ideal proletário, representado pelo conceito da harmonia universal, onde seres humanos deveriam ser considerados absolutamente iguais, com direitos iguais ao alimento, à habitação e a alguns confortos (não seria necessário luxo) produzidos por esses mesmos seres humanos, consistia na coisa mais coerente que ele, sensível e enxergando tudo à sua volta, poderia conceber.

Como até aquela época os filósofos, bem como o que seriam os futuros cientistas políticos, pregavam que avanços sociais sempre se faziam por impulso - com certa autorização - das classes dominantes, capazes de pensarem o mundo real e imaginário (já que com tempo ocioso, coisa que proletários não tinham), Dodo estava convicto de que lhe cabia o papel de agente de mudanças.

Lenin, Trotsky... Stalin... assassinatos políticos, complôs e uma repetição tediosa do Terror, época da Revolução Francesa (em que opositores ao regime eram guilhotinados em processos populares sumários e a condenação acontecia antes do teatral julgamento) muito bem retratada nos livros aos quais Dodo teve acesso, bem como a fome que dizimou milhões em 1923 (leia esse post), fizeram com que suas convições entre o IDEAL e a REALIDADE se distanciassem.

Um abismo inaceitável e intransponível se revelou para aquele que havia sido fomentador da revolução de classes desde o primeiro minuto.

Ao saber dos gulags e da violência humana perpetrada pelos comunistas - relatado por Arthur Koestler em suas incursões, como membro da elite do partido comunista, na Rússia dos anos 1920 - Dodo desencantou-se pela prática comunista, mas jamais perdeu a convicção de que um mundo socialmente mais justo, menos sangrento, era possível.

Dodo buscou todas as fontes possíveis para tentar, como cidadão comum e sem entrar na política partidária, compreender como o mundo poderia ser menos injusto. Fez isso por meio de pequenos comitês, por meio da divulgação de idéias e opiniões abertas, da mesma forma como fazia em seu consultório: ajudava os outros a ENXERGAR.

Para concluir a história de Dodo, antes de entrar no ideal do proletário brasileiro, eis uma curiosidade que bem retrata sua personalidade generosa e amorosa:

Radicado em Paris, depois da Segunda Grande Guerra, Dodo praticava a oftalmologia hospitalar e nos anos 1950, tendo em vista sua língua materna ser o alemão, foi obrigado a atender um ex-oficial nazista, que cumpria prisão perpétua em uma cadeia francesa. Aproveitando a ocasião, já que Dodo era um judeu sobrevivente, tendo perdido diversos familiares e amigos para os campos e as marchas da morte antissemitas, perguntou ao ex-nazista, que estava ajudando a voltar a exergar:

- Mas por quê vocês nos odeiam tanto, aos judeus? 

O alemão respondeu de forma direta:

- Para nós, vocês são meros ratos; não são seres humanos. E como diante de toda praga, nossa função é exterminar-lhes.

Atônito com esse relato que Dodo me fez há uns 30 anos atrás, eu perguntei a ele:

- E você não furou o olho do filho da puta?

Cândido - como era de sua natureza - respondeu simplesmente:

- Querido Dan, ele e toda a sua geração foram treinados a pensar assim e eu estava ali para tratar um ser humano que, infelizmente, só queria uma visão funcional, não a visão ética.

Por quê partilho com você, amiga/o leitor/a, essa história do Dodo... de minha família...de minha formação humanista?

Devido ao Brasil.

Devido aos últimos acontecimentos.

Devido à prisão do Lula.

A prisão de um ex-presidente não é algo banal, pois demonstra o quanto o eleitor brasileiro se equivocou. Por outro lado, a prisão de um corrupto poderoso precisa gerar a esperança de mudanças na elite política, que não mais estará a salvo da lei, da cadeia.

Um sentimento contraditório como o atual, divisivo, exige análise como aquele percurso feito por Dodo, 70 ou mais anos atrás. Ele viu, quando passaram a ser conhecidas as atrocidades de Stalin, Mao, Fidel e tantos outros ditadores que empunharam as bandeiras ditas de esquerda pela história, como somos manipuláveis. Viu que pessoas se apropriam do discurso social para atrair boas almas e assumir o poder em benefício próprio e de seu grupo. Viu que ao invés de pacificarem a sociedade, semearam medo, ódio e mais antagonismo.

Assim como diversos brasileiros que tiveram estudo, vieram do meio privilegiado que não passou fome, não foi abusado por empregadores, em algum momento de minha história - especialmente contra Collor - confesso ter votado em Lula (uma vez só).

Lula foi, por certo período e por força da ignorância geral (e a vontade de a classe média achar alguém que não fosse só pró-mercado), a projeção ideal do que gente minimamente instruída, remediada (não rica, mas com certa tranquilidade financeira), via como reequilibrador das forças sociais. Ele traria o olhar que falta às elites políticas, sociais, econômicas.

Superbem articulado, orador carismático, esse sem-estudo com senso oportunista ímpar arrebatou corações de gente que, por definição, jamais teria votado nele se soubesse da sua agenda corrupta e divisiva.

Ele mudou o Brasil, sem sombra de dúvida.

Só que do propósito inicial, pouco restou. Ele mudou o Brasil para pior e a decantação dos fatos poderá gerar reflexões positivas.

Assim como aqueles que lhe inspiraram e os que lhe seguem ainda hoje (que cedem à tentação irracional do discurso da perseguição política, da perseguição de uma tal elite que ele tanto cortejou e agradou enquanto no poder), Lula se apropriou da esperança de mudança, nutrida por gente de todos os meios sociais.

Lula atraiu - como uma viúva negra atrai o inseto para a sua teia mortal - quem desejava participar do movimento de melhoria social do país.

O ocaso de Lula da cena política brasileira me parece o momento ideal para gerar consequências muito positivas de curto e longo prazos, que tento listar:

- Reduzir o simplismo do discurso da luta de classes, que sob o manto da harmonia social prega o confronto e a eliminação de uma parte da sociedade. Esse simplismo lulista é irreal, absurdo e, portanto, inatingível. Ele soa bem aos ouvidos dos que não querem pensar, dos que tem preguiça ao contraditório. Tal simplismo foi entoado por Cazuza para a minha geração, quando éramos adolescentes: ideologia, eu quero uma prá viver. Bonito na canção, impossível na realidade, que é muito mais complexa e rica que um discurso de palanque deseja fazer crer.

- Reduzir o antagonismo do discurso e da ação por candidatos a presidente. Lula e seus seguidores pregam a violência social e promovem atos de confrontação que, se na década de 1980 - enquanto os militares oprimiam parte dos brasileiros que clamavam por maior liberdade - fazia sentido, hoje não mais é aceitável. No momento em que nenhum candidato posar de salvador ou titular da virtude, o eleitor (em especial o mal-informado, que nada lê ou pouco compreende além das campanhas de TV) passará a escutar algo além de ruído. E a virtude está no meio, no razoável... e não nas pontas, nos polos opostos, que por natureza são instáveis.

- Promover a inclusão dos cidadãos, resultante da aceitação dessa necessidade, por todos aqueles engajados socialmente, independentemente de credo, cor, filiação política, sexo, etc. A partir do momento em que o brasileiro comum entende que o combate à corrupção, à violência, à pobreza não é propriedade ou bandeira de um só grupo, mas de toda a sociedade, o discurso radical e falso de partidos e ditos "Movimentos Sociais" (nutro verdadeiro ódio a essa expressão, falseadora dos instrumentos e objetivos de seus membros...) cai por terra.

O brasileiro comum, mas intelectualizado, instruído, crítico e não muito engajado politicamente, já havia dado sua contribuição à revolução pacífica social brasileira quando, em 2002, leu e aceitou os propósitos da carta-rosa de Lula. Ficou evidente que a tal carta ao povo brasileiro (examinada detalhadamente nesse POST) era uma farsa bem montada pelos marqueteiros do PT. Reputo a isso o enorme ódio atual a Lula e ao PT. Diferentemente do folclore, o brasileiro tem memória.

Isso basta para justificar o profundo sentimento de traição que impulsiona a mobilização do povo brasileiro, especialmente daqueles educados, seres pensantes e minimamente engajados politicamente, para verem e manterem Lula atrás das grades. O sentimento de vingança foi certamente semeado pelo próprio Lula e continua o sendo pelos líderes do seu partido, que fica na história como o maior embuste político nunca antes visto.

Como ex-eleitor de Lula, como ex-simpatizante à social-democracia em épocas de adolescência, que acreditava em uma sociedade mais justa, mais harmônica, com menos violência e exploração, mas com respeito à individualidade (não se confunda com individualismo, esse sentido de egoísmo em estado bruto), partilho com o brasileiro que me lê o sentimento de traição em relação a quem teve todas as condições históricas, econômicas e políticas de mudar o país e não o fez.

Partilho contigo o sentimento de que não é dividindo um povo que se gera prosperidade, pois a divisão só serve para conquistar, mas jamais para criar. E isso não consiste em negar as diferenças. Sua abordagem não pode ser violenta. Nem no discurso, nem nas ações.

Não me preocupam rótulos ou classificações. Ter convicções é passo inicial fundamental para ter-se como indivíduo e aceitar-se.

Mentes fracas - não se as confundam com sensíveis, pois são coisas absolutamente diferentes - precisam estar em grupo para sabererem-se no mundo, pensando e agindo como gado, em grupo, seguindo ideologias, discursos e dogmas.

O brasileiro esclarecido que veio à rua para pedir a cabeça de Lula não se move por sentimentos capitalistas selvagens, por dogmas fascistas, por ódio ao proletário ou ao trabalhador, posto que os que protestam e limpam fachadas pichadas são, eles mesmos, trabalhadores exauridos por um sistema político que lhes rouba, retira qualidade de vida e esperança.

Dodo me ensinou que o pior cego é aquele que não deseja ver, mesmo tendo TODOS os meios à sua disposição.

Que aquele que deseja ver se erga, saiba por quê tanto odeia Lula, seus seguidores, seu partido, e tome um rumo diferente, criando uma união que gere prosperidade inclusiva, responsável, duradoura.

A jornada pode ser longa, como a história ensina, mas se o Brasil não se convencer que a época de divisões e antagonismos deve coincidir com a retirada de Lula da cena política nacional, por força do cumprimento da lei, aí sim teremos o que aqueles que semeiam vento desejam: caos, revolta, conflito e dor.

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