Terceirizar serviços públicos: o exemplo da inglesa Carillion ao Brasil

O Financial Times rapidamente publicou ontem: a falência de uma das maiores construtoras e operadoras de serviços públicos da Inglaterra não significa que a terceirização de serviços públicos é ruim em si.

Enorme coincidência: um dia antes do anúncio do pedido de falência da Carillion, que emprega mais de 45 mil pessoas e gerencia imensos contratos de serviços públicos, inclusive merenda escolar e prisões, na Inglaterra, eu havia publicado esse post, sobre os cuidados na privatização.

A causa da falência da empresa é o mesmo que indiquei em meu post: péssima governança.

Seja no privado, seja no público, se não gerir bem, vai falir.

Só que quando a empresa é privada, perdem só trabalhadores diretos, investidores e fornecedores... certo?

Errado!

É do que muita gente quer te convencer. Na verdade, como bem examinado no Economist dessa semana, vai sobrar para o contribuinte, na forma da descontinuidade e no encarecimento de serviços públicos essenciais. Talvez aumentarão os impostos... para financiar a implantação de atividades descontinuadas...

Os administradores da Carillion embolsaram milhões de libras nos anos recentes, em que seu colapso já era previsto... sem que fossem incomodados, pois eram o reflexo da crença de que "o privado faz melhor que o público, certo?"

Quando a empresa é pública, todo mundo mete o pau quando a governança não é boa. O discurso que ouvimos é: a corrupção só beneficia políticos e funcionários públicos desonestos... se fosse privada, não haveria isso!

Tudo isso, juntamente com meu post anterior, serve apenas a dois objetivos para provar meu ponto de hoje e do post anterior:

- Nem todo ativo (empresa) ou serviço público é passível de privatização.

- Jamais empresa privada é sinônimo de eficiência, ou Estado é sinônimo de desfuncionalidade.

A receita inglesa (mas pode-se falar na austríaca, de Chicago e outras escolas de pensamento) de que o mercado se auto-regula - ou que, ao conceder-se serviço público bastaria certa fiscalização - nada mais passa de uma quimera. Ou em inglês: wishful thinking. 2008 foi a prova em grande escala, global, dessa ilusão.

A unanimidade é burra. Essa frase do genial Nelson Rodrigues se aplica a várias coisas e atualmente, no debate brasileiro, precisa ser resgatada.

O meio-termo é sempre o melhor. Chama-se homeostase e é praticadíssimo no mundo biológico: todos tendem (ou buscam) ao equilíbrio.

Os estatistas e sindicalistas querem estados fortes, para que possam controlar e mamar nele.

Os liberais querem estados mínimos, por acharem que o mercado se auto-regula e apenas pequenas intervenções estatais bastariam para criar funcionalidade eficiente.

As privatizações a rodo, desejadas (prestem atenção em seus mensageiros, que possuem interesses abertos ou escusos, ou ambos, em fazer passar suas mensagens!) no Brasil, já foram experimentadas e provaram (como digo em meu post anterior) que foram mal feitas.

Quantidade foi, é e sempre será a antítese da qualidade.

Privatizar muito ou tudo vai dar errado. O cidadão vai ser manipulado a acreditar que será ótimo, mas daqui a 10 ou 15 anos, vai se arrepender.

Ou é necessário lembrar o que foi a catástrofe chamada Telemar, depois rebatizada de Oi?

Abra o olho! Informe-se, pense... avalie a quem interessa esse discurso do liberalizar-a-qualquer-preço.

Geralmente esse discurso envolve atores diretos, que é bom conhecer:

- o político, que vai agradar sua base de financiadores, quando se situam nessa linha de pensamento. O administrador público pode estar movido por ações justificadas, como a incapacidade estatal de financiar a empresa ou atividade pública, por desvio de finalidade desta (não essencial). Pode portanto ser uma decisão grave e sopesada, concluindo que o cobertor é curto e escolhas fundamentais precisam ser feitas. Esse político-administrador estaria, no caso positivo, agindo com seu dever-poder de melhorar a gestão pública.

- o funcionário público corrupto, que vai vender informações sobre ativos e serviços privatizáveis por meio de "consultorias" de fachada e aposentar com muito dinheiro no bolso e uma aposentadoria paga pelo contribuinte brasileiro

- o trader, que vai ganhar fortunas nas privatizações e depois passar a integrar a classe mundial dos plutocratas, dando uma banana ao país ou ao resultado de sua "maravilhosa contribuição à eficiência estatal". Ele é um pescador (muitas vezes mais que isso, caçador, induzindo demanda), sendo que havendo transação, ele vai ganhar para intermediar contatos, valores, estruturas, etc. É uma águia à espreita de presas fáceis, que a privatização cria como uma chuva de ouro.

- o consultor (auditor, advogado, atuário, contador, animador de auditório, especialista naquilo ou nisso), já que privatizar cria um mercado imediato caríssimo para empacotar informação e direcionar risco para quem pode, quer ou não tem como fugir de arcar com ele. Não estão errados por definição (já fui e inclusive sou candidato a trabalhar em privatizações, com muito orgulho), mas não conseguem captar na integralidade a necessidade coletiva, posto que são movidos por seus próprios valores, convicções, escolas de pensamento e utilizam boa técnica, mas no final da história precisam faturar para pagar suas contas e viverem de seu nobre ofício.

- banqueiros, comerciais e de investimento, que faturam absurdos com a engenharia financeira necessária por trás disso tudo. São bons no que fazem, mas como todo segmento que almeja lucro, precisam-lhe ser impostos limites que suplantam seu próprio cálculo ou avaliação do que é moralidade ou utilidade pública

- funcionário/regulador não corrupto, que em virtude do incremento do movimento econômico causado pela privatização vê suas tarefas crescerem em importância, justificando-lhe aumentos salariais e hierárquicos. Por outro lado, esse ator é crucial nas boas privatizações: ele ajuda a perceber a necessidade dos consumidores, cidadãos, pois tem uma base de dados excelente sobre o que é necessário, possível e impossível no segmento afetado. Ele é a fonte mais importante de dados para que, se houver, a privatização seja bem feita.

- sindicalistas, que juntam rebanhos para negociar condições que, por bem ou mal, beneficiam a esses próprios pilotos do processo trabalhista coletivo, já que é inevitável que empregados de empresas privatizadas serão jogados ao abismo, hora mais, hora menos. Note-se que não falei em trabalhadores, mas em sindicalistas, porque na hora em que o governo bate o martelo (aprovado ou não pelo legislativo) de que a privatização ocorrerá, é a senha para dizer: os trabalhadores de lá são preguiçosos e ruins de serviço e vamos trocar todos... é bem triste, mas é a mais pura realidade (que os bons sindicalistas conhecem bem).

- consumidor/contribuinte... coitadinho... é o último da escala de valores dos atores envolvidos... especialmente porque sabemos que ele é a justificativa de tudo (melhores serviços! mais baratos! mais acessíveis! mais eficientes! não serás roubado! blablabla), em nome dele todos falam, mas ao fim da linha o que lhe sobra mesmo é uma ligação ao Procon, a um juizado de pequenas causas e uma conta fiscal maior, porque não tem almoço grátis. Ele não tem representante, nem capacidade de organização (afinal, precisa trabalhar, cuidar da família e fazer política demanda ciência e tempo), não é ouvido (em virtude do modelo político nacional, em que o eleitor jamais se senta com seu "representante" para dizer a ele o que quer, porque o elegeu), sendo feito para tomar ferro mesmo... (daí se excluem aqueles com capacidade de lobby... grupos de pressão, uma minoria que defende o próprio umbigo eficientemente).

Repito: não sou estatista, socialista... nem (muito) maluco. Enxergo as coisas como são e, do alto da experiência de algumas privatizações nas costas, tenho uma idéia bastante boa do que estou falando.

Privatizar é preciso, mas a experiência (!) inglesa da Carillion era algo inevitável de acontecer.

Estava fácil demais para o governo britânico e para a Carillion. Só que a realidade ensina: não há nada fácil demais.

Não existe essa de delegar serviço público a um ente privado e achar que isso, por definição, é a solução de todos os problemas....

Não se pode usar privatização igual a um vaso sanitário: deu descarga e o setor privado cuidará bem da merda feita pelo setor público.

Ora, biodigestores existem há milênios. Assim sendo, sugiro: usem evidências: reformem serviços públicos, introduzam eficiência, qualifiquem equipes, usem conceitos de mercado que possam ser transpostos ao público, sabendo que a motivação não é o lucro, mas orgulho setorial, funcionalidade, eficiência e mérito.



Solução há: ela une técnica e defesa inegociável do interesse coletivo, destinatário do serviço público concedido ou dono do ativo a ser vendido. Governança também é uma palavra a ser retida, seja no privado, seja no público (não se excluem).

Gente inteligente, que fica propagando a privatização pura e simples, não pode continuar a contar meias-verdades.

Especialmente porque isso seria desonestidade... e esses pregam o combate à corrupção, devendo ser honestos no pensar e no agir.

De qual corrupção e ineficiência então eles falam? Só as dos outros?

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