Jerus - Além

Tem muita gente que acha que Budapeste é uma só cidade. É o que eu achava, até ler o livro com mesmo nome, escrito por Chico Buarque. Quando fui visitar essa cidade maravilhosa materializei a coisa: ela é dividida pelo Danúbio e na realidade ainda permanece duas cidades, pela barreira fluvial e certa mentalidade reinante. Descobri que havia uma cidade chamada Buda, e outra chamada Peste, fundadas no ano 600 a.C. Só em 1872 d.C. é que as duas cidades foram unificadas, como se pode confirmar nesse site.

Tem também muita gente que acha que Berlim é uma só cidade, mas ela foi dividida entre Oriental e Ocidental por vários anos, durante a Guerra Fria, já que o lado oriental era comunista e o ocidental capitalista. O muro caiu, a cidade (e a Alemanha) foi unificada, mas permanece o sentimento divisivo. Basta conversar com motoristas de taxi ou habitantes de um lado, para perceber que mantêm certo grau de antipatia ou desconfiança sobre quem habita o outro lado... O sucesso de Angela Merkel à frente daquele país por 12 anos se deve muito ao fato de ser da Alemanha Oriental, sabendo reconhecer as idiossincrasias de cada um dos lados, unificando-os. Ela se forjou na história e em sua excelente capacidade em enxergar as duas faces de Janus.

Jerus-Além?

Hoje será um dia complexo no meio diplomático, pela simples razão que Donald Trump anunciará, na qualidade de Presidente dos Estados Unidos, o início dos procedimentos para transferir a Embaixada Norte-Americana para Jerusalém, reconhecendo ser esta a capital do estado judaico.

Foi uma promessa de campanha sua. Há vários grupos de pressão pedindo por tal conhecimento e enganam-se aqueles que pensam a pressão ser apenas de judeus. A pressão advém de forças políticas americanas, especialmente os Evangélicos.

A constituição de Israel elegeu Jerusalém como sua capital em 1950.

É lá que atualmente se situa a administração israelense, o parlamento (Knesset) e a Corte Suprema.

O motivo é histórico, mas foi transladado para a religião: representa o porto seguro para um povo, sua casa.

Daí que, ao final da reza judaica, se diz: "Ano que vem, em Jerusalém".

A ligação do povo judeu a Jerusalém se mitificou, passou à esfera fundamentalista-religiosa, mas se retirada essa característica, o vínculo do povo judeu com Jerusalém resta intacto.

Jerusalém data de 4.000 a.C., sendo das mais antigas cidades da história humana. Foi atacada dezenas de vezes e destruída no mínimo duas vezes. Ela se situa no alto de uma bela colina, com características topográficas e hidrológicas que atraíram os primeiros povos para aquele lugar.

Sua mitificação aconteceu naturalmente, em virtude da atração de povos que causou, em toda a sua longa história. Reis e Imperadores governaram e se sacrificaram por aquela cidade. Também chamada de Cidade de David, Jerusalém acolheu uma grande população judaica no ano 1000 a.C. A diversidade de religiões e o caráter de entreposto comercial fizeram de Jerusalém um lugar de alternância entre tolerância e conflito.



Religiões monoteístas tiveram em Jerusalém grande fonte de inspiração, razão pela qual judeus, cristãos e muçulmanos possuem um vínculo mítico com a cidade, por vezes transformado em convicções políticas e até mesmo bélicas. Para os judeus religiosos, é em Jerusalém que o Messias desembarcará montado em seu jumento, para ressuscitar em primeiro lugar aqueles enterrados no Monte das Oliveiras.

Jesus teve passagem marcante pela cidade e a Via Dolorosa é dos lugares míticos mais importantes para os cristãos religiosos.

Os muçulmanos religiosos acreditam que Maomé ascendeu aos céus em sua viagem noturna a partir de Jerusalém. Em 638 d.C. Jerusalém se tornou uma cidade muçulmana, tendo a mesquita de Al-Aqsa sido erigida alguns anos depois. Isso não quis dizer a eliminação das outras religiões. Não houve imposição absoluta da fé maometana, tanto que em 1099 d.C. os Cruzados tomaram a cidade e massacraram seus habitantes muçulmanos e judeus. Há registros históricos repletos de detalhes sobre o massacre cristão. Posteriormente a luta continuou entre cristãos e muçulmanos, não mais havendo qualquer presença política local relevante judaica. A dispersão judaica mundo afora, conhecida como diáspora, sempre manteve um elo sentimental com Jerusalém, presente no imaginário e nas escrituras.

Jerusalém deveria ter-se tornado Jerus-Além em 1947. Naquele ano, a ONU propôs dividir a cidade entre duas administrações, para acomodar interesses religiosos entre judeus e muçulmanos. Já caminhava o movimento para dar um lar aos sobreviventes do Holocausto e idealmente os vizinhos árabes deveriam fazer parte do acordo multilateral.

Os árabes, liderados pela Jordânia, não aceitaram a proposta de partilha e a guerra genocida contra os judeus, lançada por eles, foi vencida pelos habitantes do novo estado judaico. Em 1948, imediatamente após a declaração de criação de Israel, o conflito deu parcial posse da Cidade de David aos judeus.

Apenas em 1967, quando a jovem nação israelense, com seus 19 anos de existência, tomou Jerusalém integralmente de seus vizinhos árabes, no segundo conflito de grande escala após sua declaração de independência, para de lá não mais sair.

Nesses 50 anos de administração judaica, Israel foi palco de atos maravilhosos de convivência multireligiosa que apenas um visitante poderia confirmar, assim como foi palco de atos de violência e intolerância religiosa e humana dos mais ignóbeis.

Capital com embaixadas

Em uma era em que a ONU tem sido marcada por um anti-israelismo e antisemitismo crescente, representado especialmente por resoluções criminosas de seu decaído Conselho de Direitos Humanos (CNUDH), minado por árabes oriundos de autocracias familiares, reconhecer o direito de existência de Israel é a coisa certa a se fazer.

A relutância da liderança palestina em reconhecer o que já existe, ou seja, Jerus-Além, é um constante grito de guerra. Esse grito, por sua natureza impossível, se transforma em discurso genocida: palestinos alinhados com seus líderes políticos (jamais eleitos) entendem que apenas a eliminação dos judeus daquelas terras permitirá o pleno atingimento das potencialidades palestinas.

A realidade, entretanto, vai contra esse discurso do absurdo. Como cidade mítica, residente do imaginário planetário e das mentiras e fantasias divulgadas pela mídia, tenta-se fazer imaginar ser impossível a convivência de tantos povos e de tanta diversidade, em um mesmo território. A falácia esconde interesses escusos, não apenas palestinos, mas sobretudo árabes.

Eliminar a única democracia do Oriente Médio é um objetivo fundamental na agenda de autocratas e ditadores, como os da Turquia, Jordânia, Irão e Arábia Saudita, para não me estender muito. O ódio religioso tem fundamentos políticos, puramente políticos. Caso contrário, não haveria tantos registros históricos de sucesso de convivência entre as duas religiões, que inclusive se uniram para combaterem, mas foram subjugadas, os cristãos da Idade Média.

Jerusalém é uma cidade aparentemente dividida religiosamente, mas administrativa e economicamente é mais unida do que se pensa.

Se Donald Trump é um mensageiro indesejado, pela antipatia que gera em quase todo mundo, não se deve menosprezar ou ignorar sua mensagem. E nisso até mesmo bons analistas judeus estão se equivocando, confundindo mensageiro com mensagem. Fazem isso por medo. O medo ronda, até hoje, o respeito à história e que seja contada de geração em geração.

A mensagem está correta, ao meu singelo ver: enquanto a ONU e algumas de suas organizações, como UNESCO e CNUDH, negam reiteradamente qualquer vínculo histórico, religioso e político dos judeus a Jerusalém, a humanidade não pode apagar sua história ou negar os fatos atuais.

Israel trouxe paz relativa a Jerusalém e não se insurgiu contra a administração compartilhada da cidade com autoridades palestinas.

Negar aos judeus o direito de reconhecer Jerusalém como sua capital política, já que histórica e religiosa, não pode passar por uma análise complexa geopolítica e atrasar esse fato por mais gerações.

Enviar a mensagem de legitimidade sobre um fato consumado há 50 anos, ao mundo, deveria ter o condão de provocar diálogo e consenso, não conflito.

Se precisa ser Trump o mensageiro, alguém antipático, então que seja.

Não é mais possível jogar para debaixo do tapete uma realidade que precisa ser enfrentada por atos e não mais discursos que não tem levado a nada. As administrações norte-americanas se omitiram nesse ponto até mais não poderem.

Não há boa hora para fazer um anúncio desses. A boa hora é quando ele é feito, e por isso, parabenizo os israelenses e, sim, Donald Trump, por ter saído da toca e mostrado sua cara, por uma causa justa e necessária (nem por isso Trump poderá deixar de ser criticado com relação a besteiras que tem dito ou feito).

O futuro sensato será entender haver uma Jerus-Além necessária, coesa e multicultural.

POST SCRIPTUM: Gostei do discurso de anúncio do Trump, dado horas depois que eu havia escrito o texto acima. O leitor pode ver e ler aqui e não diferencia, fundamentalmente do que escrevi. E isso não se deve a meus talentos intuitivos. Trata-se do enfrentamento de uma realidade que existe há um bom tempo, a qual não se pode mais negar.

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