Geopolítica e multipolaridade

A histórica tensão do pós-guerra entre potências nucleares, sob a dicotomia dominante entre liberdade econômica capitalista versus proletário-empresário comunista encerrou-se com a queda do Muro de Berlim, em 1989. 

A percepção majoritária sobre o Fim da História (ao menos, da Guerra Fria) decorre da introdução de meios de produção minimamente competitivos na Rússia (outrora maior propagadora da ideologia comunista) e a progressiva inserção da China na economia mundial. A China conseguiu acolhimento na Organização Mundial do Comércio, como se fosse uma economia de mercado, promovendo sua prosperidade  e desenvolvimento tecnológico em níveis recordes.

A adoção de meios de produção e divisão de riqueza modelados no capitalismo prevaleceu dos anos 90 até agora nas nações onde líderes desejaram a prosperidade de suas populações em aliança com o empresariado, libertando a iniciativa de empreender e promover trocas segundo leis de mercado (ainda que proto-mercado, diante da mão pesada do estado ou daqueles que estiveram no estado). 

O pragmatismo geopolítico, entretanto, manteve-se intocado, negligenciado até pouco tempo atrás.

Grandes potências e impérios sempre vincularam seus próprios objetivos políticos e militares a trocas comerciais. Esse fenômeno remonta a tempos imemoriais. 

Em vista do DNA social de nossa espécie, sociedades são orientadas a gerarem benefícios para si próprias, por vezes em associação colaborativa, mas outras vezes em detrimento de outros povos.  Há várias teorias e ideologias interessantes propondo um só destino compartilhado da humanidade, independentemente do tempo e do espaço, sem fronteiras, mas que certo dia acabam sendo confrontadas por uma dura realidade: o confronto à busca de domínio e de poder (como se vê hoje na Ucrânia e em vários outros lugares do planeta, menos mediatizados).

Certo universalismo é pregado por teóricos ocidentais e comandantes políticos, tanto no Oriente quanto no Ocidente. É recorrente a teoria de que a bipolaridade artificial da Guerra Fria não mais existe, tendo se encerrado. Se aceito tal conceito, pergunta-se: estaríamos vivendo, atualmente, na multipolaridade geopolítica?

Segundo essa visão de mundo, os modelos econômicos e políticos atuais seriam fluidos, menos definidos e sem barreiras físicas, humanas... Alianças estratégicas entre nações observariam geometrias variáveis, o mesmo ocorrendo com conceitos éticos, de direitos humanos e outras questões fundamentais.

Daí pergunto-me: essa multipolaridade legitimaria certo equilíbrio ou seria a fórmula para retornarmos à Europa da primeira metade do Século XVII?

O nascedouro do novo Direito Internacional Público é reputado como tendo ocorrido em Westphalia, no ano de 1648, quando se concebeu a diplomacia moderna. Até então, acordos secretos entre reis impediam clareza nas relações internacionais. Não se sabia quem era realmente amigo ou inimigo do outro, criando caos e insegurança. 

Westphalia decorreu em grande parte da devastação européia após 30 anos de guerra que dizimou 1/3 da população alemã e tantos outros povos. A paz decorrente do grande acordo foi duradoura, tendo sido rompida em nível continental apenas em 1914, ano do início da insana Primeira Grande Guerra.

Aos que falam em multipolaridade, não haveria apenas um tabuleiro geopolítico onde as peças se movem em uma dimensão. Haveria várias dimensões em que nações amigas seriam antagônicas, dependendo apenas da dimensão abordada, em uma interpretação complexa, fluida e... perigosa como aquela que causou o desastre que antecedeu Westphalia.



Por quê questionar o discurso corrente e insistir na bipolaridade, como se a Guerra Fria ainda estivesse entre nós?

Ora, basta ouvir o discurso de líderes de grandes potências econômicas ou nucleares. O tom bélico e divisivo, confrontativo, faz parte do que tem sido ecoado por eles e seus canais de comunicação. A invasão genocida dos russos sobre a Ucrânia e a anunciada anexação de Taiwan à China desafiam entendimento de que vivemos na multipolaridade. 

Ainda que a multipolaridade faça sentido, sendo desejável imaginar-se que não estaríamos vinculados a apenas escolhermos dois lados de uma moeda, a realidade insiste em nos lembrar que a humanidade está organizada de forma bipolar quando analisadas as grandes linhas (nas minúcias, a complexidade é imensa e de difícil percepção, ou mesmo aferição).

A tendência humana é escolher entre o bem e o mal. Simples assim.

Antropologicamente, pensa-se assim: quem não é da minha tribo, sendo de outra tribo, é suspeito e são grandes as chances de ser meu inimigo...



Se, quando viajamos a turismo, não pensamos assim, no campo comercial e principalmente militar esse é o pensamento corrente: há lados.

Resta então compreender:

Estariam China e Rússia unidas para enfrentarem desafios comuns (imaginários ou reais), notadamente no Ocidente, que lhe desafia sobretudo com métodos e armas modernas, diferentemente de outros locais onde o neocolonialismo flui livremente? 

Tudo indica que sim, a despeito de a China ser o maior fornecedor de metais raros e produtos industrializados a esse mesmo Ocidente, que porventura enxerga com suspeita... Há interdependência, mas o país mais populoso do planeta (ou o segundo, atrás da Índia) deseja guardar sua independência absoluta.

Estariam os países ocidentais, sobretudo europeus, dispostos a pensarem sozinhos e sem a ajuda dos Estados Unidos, como ocorre desde o fim da Segunda Guerra Mundial, criando um tripé geopolítico? Ora, isso parece totalmente improvável, como a visita da primeira-ministra italiana aos Estados Unidos provou semana passada... quando declarou ser o momento de desacoplar-se da Rota da Seda e buscar aproximar-se mais dos países ocidentais, seja pela via comercial ou militar.

A geopolítica é uma ciência altamente complexa, em virtude das variáveis e vetores de interesses que seguem lógica própria.




 





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