Contexto e Fake News

Piada, das mais antigas, reza que o melhor político é aquele acredita piamente nas notícias que "planta" na imprensa, através da amizade íntima do troca-troca com os editores e donos de empresas de mídia.

Arthur Koestler, jornalista e filósofo, inadvertidamente cobriu o Holodomor como filiado do partido comunista há quase 100 anos, convidado pelo regime soviético para uma tournée na antiga URSS. Como tudo denunciou, caiu em desgraça aos olhos dos comunistas (inclusive com diversas ameaças de morte). 

Em suas autobiografias intituladas Flexa no azul e A escrita invisível, Koestler fez clara distinção entre notícias reportadas (daí a expressão reporter, do francês, que significa contar como foi) e notícias manipuladas. Ele indicou que a Alemanha e a URSS criavam narrativas próprias ao regime de forma absolutamente descarada, enquanto que naquela época os ingleses reportavam e era condenável distorcer dados inserindo opiniões. Cita ele inclusive o chefe de redação de um jornal alemão com quem trabalhou, que dizia ser necessário "organizar as informações" para entregá-las digeridas ao leitor... Vale ler suas obras, reais, cruas e verdadeiras no melhor sentido de honestidade e rigor.

Podemos dizer que os soviéticos, ao eliminarem os escritores, poetas, historiadores e tudo o que significava conhecimento e tradição, já que os viam como estruturas sociais imutáveis de dominação sobre o proletariado, projetaram a ignorância como modo seguro de manutenção do poder. O conhecimento, segundo a doutrina soviética (e comunista-política), deve ser apenas aquele definido pelo partido, pelos poderosos, sem derrapar ou alcançar elementos que não interessam ao regime. Dessa forma, criar narrativas em uma imensa população de ignorantes e reprimidos pelo medo, sem ninguém preparado para questionar, torna-se fácil e foi o que o ocorreu na URSS.

Se os russos tiveram Tolstoy e Dostoevsky, para depois eliminarem qualquer filósofo ou pensador que se insurgisse contra a ideologia dominadora pela força, como bem descreveu Soljenítsin em seu Arquipélago Gulag, a Alemanha também foi  berço de grandes filósofos e poetas, como Schiller e Cohen. Nada dessa herança cultural impediu a manipulação das massas famintas e aterrorizadas por meio das narrativas criadas por grupos de tiranos e regimes fortes.

A comparação entre URSS e Alemanha, do ponto de vista cultural, é simbólica, mas significativa, pois regimes fortes, e não apenas comunista e nazista, mas também o fascismo da Itália e vários outros países subjugados por tiranos usam o mesmo manual: eliminação dos críticos, poetas e filósofos, enquanto criam narrativas pelas mídias que dominam (eliminando aquelas incômodas).




Parece-me que com a eleição de Donald Trump a questão das Fake News ganhou notoriedade, indicando como narrativas são criadas de acordo com o gosto dos poderosos, permitindo a orientação ou dominação das massas. Trump foi um hábil criador de factóides. 

Ele construiu sua imagem baseada em jogadas de mídia tanto para nutrir sua personalidade narcisista, quanto para atingir seus objetivos comerciais e, finalmente, políticos. Com menos finesse e cuidados do que políticos tradicionais, esse empresário tornou-se magnético para muitas pessoas, atraindo olhares e atenção, seja por desprezo ou admiração, mas sempre em intensidade exagerada e infundada.

O Brasil, absorvedor automático de idéias (sobretudo ruins) e modelos alheios sem grandes filtros, politizou rapidamente o assunto das Fake News. Criou projetos de lei e investigações judiciárias apoiadas pesadamente pela mídia tradicional, esta a mais ameaçada pelas redes sociais e modos alternativos de disseminação de  fatos e conhecimento, muitas vezes inúteis, inexatos ou meramente conspiratórios. 

A mídia tradicional, aquela construída e herdada pelos grandes patrões da imprensa intimamente ligados aos políticos, tem reagido vigorosamente contra as redes sociais e a liberdade com que qualquer pessoa pode disseminar não apenas fatos, mas idéias. 

Até então, tudo era restrito a um punhado de protagonistas que se conheciam, possuíam identidade e, em especial, partilhavam agendas políticas e de poder razoavelmente controláveis. À exceção das rádios-piratas ou dos jornais clandestinos (que sempre aconteceram em regimes fortes, pois a busca da liberdade é uma pulsão humana), a grande mídia (também chamada de mainstream) jamais aceitou perder poder (constituindo-se no 4. poder no modelo político de Montesquieu). 

O que fez a grande mídia permitir que, finalmente, a questão das Fake News fosse explorada? Esse fenômeno - como Koestler havia descrito há mais de meio século - manteve-se oculto, escondido, até que o advento das redes sociais se tornasse em irresistível concorrente do status quo

Manipular a opinião pública com pessoas travestidas de repórteres financiadas pelo estado (já que grandes conglomerados midiáticos e agências noticiosas dependem de anúncios estatais) era algo seguro, um oligopólio com enorme barreira à entrada que a tecnologia derrubou por terra.

Com o advento da internet, mas sobretudo de plataformas como Google, Facebook, Twitter, Instagram, WhatsApp, Snapchat e tantas outras, o oligopólio da mídia foi transferido para esses novos mamutes transnacionais. Eles programam seus algoritmos para viciarem o usuário (efeito colateral), mas permitem algo incrível e de valor: vários fatos e opiniões circulam livremente, sem censura (ao menos, na aparência) centralizada, já que (ainda) inexiste governo global que impeça calar a todos em todos os lugares.

O problema da liberdade de circulação de dados é prosaico: ele demanda contexto. E poucos conseguem contextualizar com mínima competência.

Alguns exemplos:

O Québec é matriarcal, possuindo a mulher uma posição socialmente superior na sociedade em geral (ainda que haja mais patrões de empresas homens do que mulheres, bem como ainda haja madames que não trabalham, sustentadas por seus maridos prósperos). Quando você compra um imóvel enquanto casado, o nome da mulher vem primeiro, assim como nas guias de imposto, nos carnês escolares. O sobrenome da mulher não pode mudar no casamento e os filhos portam ambos os sobrenomes, não havendo eliminação do feminino em favor do masculino. Como falar de feminismo no Québec e no Brasil da mesma forma?

O Brasil é um país machista onde a erotização feminina suplanta o razoável. Desde a puberdade as meninas são sexualizadas, expostas como produtos consumíveis em vitrine. É claro que o clima ajuda, pois o calor faz corpos se exporem, mas vai muito além do razoável. As mulheres são vítimas intensas de crimes sexuais, criando um círculo vicioso terrível. O feminismo no Brasil precisa de um enfoque diferente daquele do Québec, pois são contextos diferentes.

Uma colega tunisiana radicada no Québec contou-me como a mulher é tratada na Tunísia, e em outros países árabes. O filho vale o dobro na contagem da herança se o pai morre, muitas vezes a filha não tendo direito a absolutamente nada. O marido pode espancar a mulher se ela tiver algum desvio de conduta. O pai pode matar a filha que adotar padrões ocidentais. A erotização feminina é proibida em público, mas todos conhecemos os contos das Mil-e-uma-noites, em que as mulheres eram apenas material de consumo (descartáveis após uso) aos poderosos. Fica claro que falar de proteção dos direitos da mulher num país desse é totalmente diferente do Québec e do Brasil... ou seja, tudo exige contexto.

Só que a Terra Plana das mídias tradicionais e redes sociais tem criado a falsa impressão que não há contexto, apenas há valores absolutos. 

Isso é um equívoco.

Isso gera ilusões.

Isso gera a impressão de que vivemos na tal Aldeia Global, ou que somos homogêneos, únicos seres da espécie humana.

Ora, somos tribais e qualquer pessoa sabe disso intimamente, ainda que o negue nas aparências.

Silenciar notícias, opiniões, impressões, poesia, filosofia, comediantes, atores, filmes, documentários, eliminar livros e idéias apenas pelo seu caráter incômodo não é aconselhável.

A moderação pode ser necessária quando o extremismo se manifesta em qualquer mídia (tradicional, mainstream ou alternativa), mas deve ser distinta da censura. A censura a idéias e opiniões é execrável e deveria ser combatida por pessoas minimamente honestas e éticas.

Há mais de dois séculos o povo alemão canta Die Gedanken Sind Frei. Virou um hino contra a repressão, expressando que o sentimento de liberdade é inerente ao ser humano, sendo mais forte que qualquer tirano.

Aprendi a cantar a música no Goethe Institut de Belo Horizonte, Brasil, quando estudei alemão (idioma de minha família paterna, judeus romenos de origem cultural austro-húngara).

Nesse atual mundo hiperconectado, em que narrativas causam medo e terror, onde jovens vêem-se facilmente manipulados, angustiando-se de que o fim do planeta está a poucos anos de distância, segundo lhes dizem políticos e mídia influentes, devendo aceitarem e imporem-se sofrimento e sacrifícios para garantirem salvação eterna (no melhor estilo fanático-religioso), sugiro ouvir a canção citada abaixo.

Aqui, ela foi entoada após a tentativa de calarem-se vozes incômodas e dissonantes por terroristas, em analogia ao que hoje vemos por meio das narrativas sem contexto, desagregadoras e aterrorizadoras que contaminam e geram mais pânico do que o próprio coronavirus.


 








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