Europa volta às raízes

Um grave incidente diplomático entre Turquia e Holanda demonstra o quanto a Europa está dando meia-volta, no que diz respeito à tolerância.

Dois ministros turcos iam se juntar à comunidade islâmica em Roterdã para fazer um ato a favor do aumento de poderes ao já todo-poderoso semiditador turco Erdogan (não corrijam dizendo que ele encontraria apenas turcos, pois seu partido é islâmico). Como as eleições legislativas holandesas ocorrerão no próximo dia 15 de março, um protesto com representantes oficiais do governo turco em território estrangeiro seria uma afronta à soberania holandesa. As autoridades holandesas estão certas, mas se manifestam tarde demais, pois a percepção é de descontrole político sobre grupos sectários religiosos.

O incidente diplomático turco alimenta o sentimento xenófobo, crescente, especialmente contra muçulmanos. Esse grupo sectário insiste, muitas das vezes, em não se assimilar aos valores europeus, especialmente não separando estado e religião. Ao clamarem pela adoção da Sharia, lei religiosa maometana, em substituição às leis dos homens, democraticamente discutidas, postam-se como risco iminente aos valores ocidentais e tornam-se alvo europeu.

A meia-volta européia é uma reação a um ato violento. É a consequência direta da abertura do continente aos imigrantes que fogem de conflitos bélicos e religiosos em seus países de origem. Como países árabes ricos e pacíficos, como Arábia Saudita e Emirados Árabes, não desejam receber nenhum imigrante muçulmano (mas financiam sua migração para Europa e Américas), esses tentam a vida levando o melhor e o pior de sua cultura a outras paragens. Ao abrir suas fronteiras a imigrantes, muitos deles provenientes de antigas colônias européias africanas e no Oriente Médio, o europeu confronta riscos a seu modo de vida e questiona se abrir sua sociedade aos recém-chegados foi uma boa idéia, sem impor a obrigatoriedade da assimilação cultural (leia-se: abandono da religião).

Na Alemanha, os turcos sempre foram discriminados. Foram "importados" para exercer subempregos que os nativos não queriam, mas que contribuiram substancialmente ao inegável colosso econômico alemão. É o mesmo com os mexicanos, que pegaram os subempregos que os norte-americanos não queriam, sendo pagos salários de miséria e, ainda assim, continuam discriminados. Os turcos tiveram sua ascensão social e econômica restrita pelo povo germânico e acabaram, como seria natural quando não se é benvindo, por organizar-se em guetos. Os guetos não eram apenas culturais, mas tornaram-se políticos e religiosos, dando espaço a fundamentalistas, onde essa divisão não ocorre.

Brasileiros são benvindos mundo afora (e se juntam apenas para cantar e comer, não para conspirar). Brasileiros se assimilam com facilidade em virtude da herança cultural européia; somos um povo benvindo por onde vamos e andamos, apesar de barulhentos e expansivos, pois não ameaçamos cultura alguma.

Os guetos turcos tornaram-se guetos islâmicos políticos e religiosos: a barreira cultural, econômica e social imposta pelos alemães e europeus do leste - da qual pouco se fala, mas que é muito real, quando se quer aceitar e examinar o fenômeno - fez com que segunda e terceira geração de imigrantes tivessem tendência a condenar a sociedade que lhes acolhia territorialmente, mas não socialmente. Do isolamento social veio a revolta aliado ao horrível tom islâmico fundamentalista. Esse foi o passo adicional e torna a ameaça de confrontação continental em algo real. Milhões de muçulmanos provenientes da crise humanitária na Síria, Afeganistão e outros países entraram na Europa nos últimos 10 anos. Acuados, os europeus não os querem mais e reagem fortemente nas urnas desde 2015.

A Europa das luzes, do Renascimento, da separação entre estado e religião, está sendo obrigada a rever seus valores humanistas, só que pelo pior motivo. A toda ação, cabe uma reação. Isso se compara a outros movimentos radicalizadores, como Israel que, décadas atrás primava pela pouca interferência religiosa no governo e que hoje, em razão de décadas de ameaça existencial árabe e os últimos anos de ataques provenientes de fundamentalistas islâmicos em Gaza e no Líbano, vê-se no limite da tolerância.

O fenômeno Trump, seguido de outros governos - especialmente na Europa do Leste, marcada pelo nojento antissemitismo e xenofobia desde sempre - decorre fundamental da incapacidade de as populações nativas e "de base" manterem-se à margem da onda migratória, sem se sentirem ameaçadas. O acolhimento de poucos imigrantes não muda uma sociedade. Já o acolhimento de milhões altera em muito a percepção do que significa tolerância aos hábitos do "outro". A distância cultural torna-se, então, uma ameaça à coletividade e estão lançadas as bases para o conflito interno, até mesmo a guerra civil.

A migração muçulmana trouxe hábitos muito diferentes à Europa. Seus valores vão de encontro a valores ocidentais arraigados, como liberdade feminina (não admitem que a jovem namore e case com homem de outra religião, obriga mulheres à mutilação genital feminina, ou circuncisão clitoriana, hábito abominável islâmico, etc.), liberdade de religião (em seus países de origem estão acostumados a proibir igrejas, sinagogas ou templos e exerício religioso de qualquer religião que não seja o Islã, condenando à morte quem muda de religião ou escolhe ser ateu), liberdade de opinião (membros do tablóide Charlie Hebdo foram alvo de uma chacina islâmica, pois não admitem que seu profeta seja representado em desenho, muito menos parodiado), e tantas outras imagináveis. Ao europeu a mão de obra barata já não compensa o sacrifício do seu modo de vida. A crescente violência contra a mulher tem sido reputada a imigrantes em países pacíficos até há poucos anos, como a Suécia.

Na medida em que esse choque de culturas toma as ruas, atos terroristas vinculados a tal crença ganham as manchetes e criam o medo tão almejado pelos radicais. A reação européia é violenta, só que majoritariamente e pela via democrática do voto.

Ao não se inserirem - ou voluntariamente não aderirem, pelos motivos acima expostos, já que muitos imigrantes desprezam ou mesmo abominam as liberdades ocidentais - nas sociedades locais, por meio da assimilação, ao idioma e aos valores locais, os imigrantes acabam por se organizar em meta-sociedades. Ao se manterem à parte, passam a viver realidades paralelas que são incompatíveis com o mundo na visão tradicional européia. Quando tais meta-sociedades desprezam a sociedade que lhes acolheu, passam a tornar-se dispensáveis ou até mesmo ameaças. O retrocesso se instala.

Não se deve esquecer, portanto, que a Europa, no auge de seus valores "civilizados" do início do Século XX, foi o teatro da maior atrocidade humanitária até hoje perpetrada: o Holocausto.

perseguição impiedosa dos judeus de 1933 a 1945, causando a quase-erradicação européia desse povo pouquíssimo numérico, ocorreu sob os olhos da maioria cúmplice.

A Alemanha, após o Tribunal de Nuremberg condenar apenas 13 nazistas à morte (e só isso) teve seu governo pós-guerra gerido por uma maioria de burocratas nazistas. Esses carregaram impunes o sangue inocente em suas mãos e passaram tais valores a muitos de seus descendentes, o que justifica o neonazismo latente, mas pouco comentado, posto que aterrorizante. O abominável sentimento racista e de impunidade, especialmente quando grupos nacionalistas agem em grupo, é característica européia que nem os mais belos castelos ou culinária e música podem fazer a humanidade esquecer. Se virarmos os olhos dessa realidade histórica, estaremos condenados a repetí-la.

Apenas à guisa de conclusão desse tópico, note-se que Nuremberg absolveu a totalidade dos administradores da IG Farben, indústria química que produzia o Zyklon B, confeccionado para matar seres humanos em câmaras a gás. Relatórios da empresa, produzidos durante a guerra, determinavam com precisão germânica qual a melhor concentração para produzir o maior número de cadáveres humanos em menos tempo. Nenhum dirigente foi preso e a empresa continuou funcionando prosperamente após o fim do conflito e do morticídio.

A fraquíssima liderança política européia dos últimos 20 anos causou uma crise de valores agora iminente, como que abrindo-se a cortina do espetáculo grotesco.

Ao aceitar impassivelmente o genocídio da Bósnia, ocorrido em 1995, e a 1 hora apenas de vôo da Torre Eiffel, os líderes europeus e sua população abriram a caixa de Pandora: aceitaram que minorias fossem exterminadas à sua porta, assim como o processo iniciado na década de 1930. A história se repete tediosamente.

Hannah Arendt, cientista política que registrou os horrores da Segunda Guerra, em suas Origens do Totalitarismo, descreve que "soluções totalitárias conseguem sobreviver a queda de regimes totalitários, deixando latentes fortes tentações de voltar quando parece impossível aliviar desafios políticos, sociais ou econômicos pela via humana". O alerta de Arendt não poderia ser mais presente, nos dias de hoje.

O crescimento da onda nacionalista e da xenofobia precisa ser entendida, pois ela vem forte e conviveremos com ela nos anos vindouros. Se for taxada unicamente de extrema-direita pela mídia, sua tendência é isolar líderes e permitir com que sigam por caminhos similares aos genocidas europeus que conhecemos, como Stalin, Hitler, Franco e Mussolini.

O silêncio ao genocídio bósnio (e mesmo sírio) das lideranças européias, a abertura indiscriminada das fronteiras, a equivocada unificação européia decidida por políticos e não pelo povo, compõem a fórmula onde a tolerância indiscriminada é, do dia para a noite, substituída pelo medo xenófobo e a violência.

Como é absolutamente improvável uma reforma do Islã, ou algo que transformasse tal religião em algo inofensivo e apenas espiritual, a acomodação européia parece improvável pelo que se ouve dos discursos nacionalistas que ganham o poder.

Poderia piorar, indo da retórica à ação? Estaríamos à beira de ver pogroms, perseguições, serem criados campos de concentração e haver deportação em massa?

Sim, tediosamente a história se repete.

Se não surgirem lideranças moderadas, dos dois lados do espectro político-religioso, certamente haverá muito sofrimento na Europa. Ela, desde a antiguidade, vê crises humanitárias em seu solo ganharem dimensão mundial. O que seria diferente nos dias de hoje, em que os tais "progressistas" acham que são donos da verdade e "condenam tudo o que não é espelho", tal como Trump, Le Pen e Guilders?

Einstein já dizia: "não sei ao certo como a Terceira Guerra Mundial será travada, mas sei que a Quarta Guerra Mundial será com paus e pedras".

O rearmamento nuclear é uma realidade, anunciada por todos os líderes nacionais dos EUA à China, passando por Europa e Rússia.

Tal realidade parece longínqua ao brasileiro, que não conhece a guerra ou os conflitos sectários.

Ao estarmos conectados e viajarmos mais, o país (ou o continente) sentirá claramente o que o recrudecimento da tolerância criará: dificuldades, discriminação humana, comercial, financeira, etc.

Esse cenário aterrorizador precisa ser examinado, para surgirem moderados e chamarem-se as ameaças pelo nome que têm realmente, ao invés de apenas condenarmos gritos nacionalistas que parecem, alguns, ser justificados, ou serem silenciados pelo "politicamente correto" que tudo admite e nada quer ver.

O redesenho da Europa começou. Durará décadas. Só torço para ninguém ser doido demais e apertar o botão...

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