Pertencimento e crítica
Quando Jean-Jacques Rousseau, 250 anos atrás, intelectualmente isolado por suas idéias revolucionárias para a época, concebeu o Contrato Social, ele idealizou o pertencimento de indivíduos a uma coletividade espontaneamente colaborativa, em que certos direitos seriam sacrificados por um bem-maior. O inovador e disruptivo Rousseau visava esvaziar conceitos de legitimidade de reis e clero sobre o povo, que deveria decidir soberanamente o próprio destino.
O ideário da transposição do abandono na
pobreza ao pertencimento empoderado conquistou a sociedade francesa, fazendo-a revoltar-se
violentamente em 1789. Enfim, haveria uma alternativa participativa ao
absolutismo e à tirania!
O império da lei idealmente livre dos vícios
humanos contém elementos divinos de perfeição, mas é atraente por aplicar-se
horizontal e igualmente a todos. Nações surgiram em seguida e a idéia do
legalismo ganhou força, onde a materialização do sonho perfeito e acabado de um
Contrato Social resultante do ordenamento legal mereceria ser aceito por todos.
Surgia, entretanto, um probleminha: quem faz e
aplica as leis? Ora, seres humanos e as instituições em que habitam, com suas
falhas, preferências e interesses, exigindo rotação contínua e questionamento, caso
queira-se resguardar a idéia da legitimidade do acordo social voluntário
produzido por humanos e não por deuses.
O caráter falível humano torna obrigatório não se
depositar totalmente a crença de que normas legais, tribunais e estado de
direito sejam solucionadores de todos os problemas da sociedade, a despeito da
sua inquestionável utilidade. Muitas vezes, esses próprios institutos constituem
o problema. A história oferece muitos exemplos de tiranos legalistas, comprovando
sua falibilidade.
Berthold Brecht propôs solucionar o grave dilema
de um povo que não apóia suficientemente tiranos que lhes subjugam: “não seria
mais simples o governo dissolver o povo, elegendo outro?”. Assim, sairiam
satisfeitos a lei e suas instituições imutáveis, ignorando-se o
descontentamento popular.
Eric Posner lançou luzes, há quase duas décadas,
sobre os perigos do legalismo e do institucionalismo. O necessário alerta sobre
o caráter ilusório de leis e instituições sacrosantas, desconectadas das
personalidades que as habitam, encontra muitas vozes para ser ignorado. Impor a
submissão da população a leis e instituições sem limites, reflexão ou crítica
não possui fundamento justificável, constituindo uma tolice se algum ideal
civilizatório persistir.
Um exemplo clássico das graves falhas do
legalismo é a atuação da Corte Internacional de Justiça. A CIJ, em sua história,
só logrou êxito em disputas localizadas e pontuais, quando países-parte
participaram ativa e diretamente na busca da solução pacífica de seus conflitos,
atuando a corte como facilitadora e orientadora do diálogo. E nada mais. Transformada
em caricatura, para ojeriza dos internacionalistas, a CIJ vê-se apropriada por
grupos de interesse e ativistas que teimam em ignorar seu limitado escopo e
legitimidade. Os que ainda sonham alçá-la a uma relevância que jamais terá visam
apenas dar formal aparência aos próprios delírios sectários.
É forçoso refletir que o mesmo estaria acontecendo
em instituições brasileiras, outro lado da mesma moeda com que o Brasil se debateu
e entendeu ter sepultado há exatos 40 anos. Longe de promoverem o anarquismo,
Rousseau e Posner são filósofos políticos dedicados à evolução social, transpondo
eras.
Esses todos foram antecedidos pelo temível Tersites,
citado na Ilíada de Homero como a figura física humana mais desprezível da
Grécia. A despeito da repulsiva feiúra, seus propósitos críticos eram amplamente
considerados como pertinentes. Tersites zombava das autoridade gregas,
alinhando-se a gente comum. Ao denunciar abusos da elite poderosa e sua
adoração pela estética desprovida de caráter ou conteúdo, aquele grego esquálido
soube opor-se ao teatro heróico dos cínicos. Ele representa mais que mera
alegoria, pois nele reside verdadeira humanidade, aquela que relativiza o
legalismo, o institucionalismo dos tiranos.
Também disponível no veículo Brasil Confidencial.