Shangri-La

     Qualquer ser humano, quando adulto, tem a nostalgia romântica do retorno ao berço familiar, em especial quando teve o privilégio de ser concebido e criado em um meio acolhedor, saudável e amoroso. Isso acomete a todas as pessoas confrontadas pela realidade nua e crua do mundo, com suas complexidades e idiossincrasias.

Por isso, tanto Thomas More, em sua obra “Utopia” escrita em 1516, influenciada diretamente pelo recente confronto cultural dos europeus com os nativos das Américas que acabavam de “descobrir”, tido como inocentes e naturalmente bons, quanto James Hilton, em seu “Horizonte Perdido”, de 1933 (influenciado pelos horrores da Primeira Guerra Mundial), apontavam civilizações primitivas como próximas do ideal humano: sem guerras, ganância ou desigualdade aparentes.



Tão importante foi esse movimento de valorização do primitivismo como algo próximo da perfeição social que criou-se o Mito do Bom Selvagem. Esse mito amplamente incutido na psiqué humana moderna tem origem bíblica no paraíso, tendo sido citado pelo grego Hesíodo (Século VIII a.C.) e reiterado em diversas artes e culturas até nossos dias.

À medida em que a civilização torna-se sofisticada, complexa, mais pode tornar-se difícil ser decifrada e navegada, sobretudo aos que adotam a ótica simplista e superficial de quem confunde essência com barulho, aparência com realidade. O Mito, assim, torna-se atraente, sedutor. Na Era da Informação, em que qualquer pessoa tem disponível qualquer informação a um simples toque de tela, parece que o grande volume de dados afoga, fazendo alguns recorrerem à fuga da realidade por meio do culto ao primitivismo idealizado.

O escapismo tem criado e recriado mitos representados em obras de vários autores imaginativos, recicladores do paraíso bíblioco ao seu próprio estilo. Daniel Dafoe, no atraente “Robinson Crusoé” (1719), e Voltaire, em seu ”O Selvagem” (1767), idealizaram o ser natural como sendo livre e virtuoso, não corrompido pela sociedade moderna. Na mesma linha, nos anos 1980, alcançou as telas o romance soft-porn intitulado “A Lagoa Azul”, em que a beleza inocente dos jovens Brooke Shields e Christopher Atkins recriou, na idílica ilha isolada, o retorno à essência humana, sem maldade ou corrupção, apenas sujeito às pulsões amorosas.

Nos último 40 anos, em vista do grande desenvolvimento tecnológico do pós-guerra, intensificado pelo contágio da juventude ocidental da culpa à prosperidade resultante de movimentos políticos como o amor livre, aliado ao imenso tédio espiritual da classe média, o Mito do Bom Selvagem transformou-se no “Politicamente Correto”. Daí, foi um pulo para desaguar no “Wokeism”, um movimento radical em que se isolam valores fundamentais da sociedade humana, substituindo-os por modulações identitárias, sectárias, fundadas no primitivismo ignorante em que se nega sobretudo a sofisticação vantajosa em que atualmente nos encontramos (e tudo o que esta representa).

A infantilização diante da realidade é uma tendência poderosa, fundada na ignorância voluntária e baseada na idealização de uma sociedade não-complexa, em que todos os confortos do nosso mundo atual coexistiriam com o estado puro humano. As nuances, a diversidade histórica, social, étnica, religiosa, genética, seriam negadas para criar-se uma sociedade ideal, tão desprovida de lógica quanto o terraplanismo. Evidentemente distorcida e inatingível, essa utopia infantil tem contagiado meios acadêmicos, políticos, a vida em geral, gerando crise de governança, já que os dirigentes e eleitos desconhecem fronteiras e marcos decisórios.

A despeito de ser bela fábula, o Mito do Bom Selvagem, daquele ser primitivo incapaz de julgamentos ou de atos maus, aliado ao sonho de que jaha um Shangri-Lá despoluído e despopuloso, paraíso representado por um vale tropical, oculto nos Himalaias gelados em que apenas a vida espiritual importa, cuja abundância é garantida pelo ócio, têm compelido o ser moderno a menosprezar a tão necessária ação humana como receita de vida sobre a terra.

Perceber esse mito mental que contamina tantas ações humanas e governamentais, que orienta boa parte da geração atual aderente à visão imaginária e falsa de uma realidade sonhada, torna-se necessário. Sonhar é bom, essencial. Viver sonhando e acreditar que destruindo conquistas humanas na crença que a selvageria seria a melhor receita para criar harmonia e felicidade não parecem ser receitas saudáveis, nem duradouras.



Artigo também publicado no veículo Brasil Confidencial.

Mais lidos

Metacognição e assuntos de estado

Pertencimento e crítica

Trump e bazófias dos governantes canadenses

Visitando o Partido Novo

Pior que bomba atômica: o dia em que a terra parou